'Algo em que acreditar': em tese premiada, pesquisadora baiana fala sobre adesão de jovens ao Estado Islâmico
Os atentados do 11 de Setembro, que completaram 20 anos este mês, ajudaram a disseminar desconfiança contra muçulmanos pelo mundo
Abdel-Majed Abdel Bary, Mohammed Emwazi, Junaih Hussain e Tania Joya Choudhury eram quatro crianças muçulmanas vivendo na Inglaterra na década de 1990. Antes de completarem 18 anos, assistiram atônitos ao atentado terrorista às torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos e aos desdobramentos daquele episódio que, este mês, completou 20 anos. Se ser muçulmano em um país com cultura tão diferente já não era fácil, imagina ser jovem e muçulmano quando o mundo inteiro os olhava com desconfiança. A infância e adolescência dos quatro, e de tantos outros, acabou marcada por tensão, desconfiança, humilhação e ausência de pertencimento. Antes dos 30, eles tinham sido cooptados por um grupo extremista que parecia preencher uma lacuna – o Estado Islâmico.
As trajetórias destes quatro jovens são contadas na tese de doutorado da pesquisadora baiana Hannah Romã Bellini Sarno, defendida em dezembro passado no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (Pós-Cultura/Ufba). O trabalho ‘Algo em que acreditar: trajetórias de seguidores do Estado Islâmico na Inglaterra’, um dos vencedores do Prêmio Capes de Tese 2021, mostra como uma busca desses jovens por identidade em um momento de crise provocou a adesão deles e de outros muçulmanos vivendo no ocidente ao EI.
Para a pesquisadora, os atentados de 11 de Setembro, com certeza, tiveram impacto no imaginário desses jovens. Tania Joya Choudhury, por exemplo, a mais velha dos quatro, tinha 17 anos quando assistiu pela TV ao ataque da Al-Qaeda às torres gêmeas. De imediato, achou aquilo tudo “terrível”. Mas, uma conversa com uma amiga de origem paquistanesa a fez ver o episódio com outros olhos.
A garota teria perguntado se aquilo tinha sido mesmo tão terrível assim. Tania ouviu o ponto de vista dos pais da amiga e tudo o que veio após os ataques serviu para confirmar a nova visão sobre os fatos: a Guerra do Iraque e o aumento das desconfianças sobre os muçulmanos a tornaram, como definine a própria garota, uma "jihadista hardcore". Surgiu nela um sentimento de lealdade às suas origens – a família da adolescente era de Bangladesh – que a colocava em conflito direto com o país onde ela havia crescido – a Inglaterra.“Embora se diga com frequência que os atentados do 11 de setembro mudaram o mundo, as respostas ao atentado, mais notadamente as subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque, foram tão centrais nessa dinâmica quanto os ataques em si”, explica Hannah.LEIA ENTREVISTA NA ÍNTEGRA COM A PESQUISADORA
“Com toda a certeza essas questões tiveram enorme influência no imaginário dos jovens que eu analisei na pesquisa, segunda e terceira gerações de imigrantes de origem muçulmana na Inglaterra, os tornando mais suscetíveis a discursos radicais. Essa geração sofreu o impacto da introdução do Islã e dos muçulmanos no imaginário coletivo ocidental com o 11 de setembro, que implicou um senso de desconforto e desconfiança em relação ao grupo”, completa a pesquisadora. Hannah viveu 15 anos na Inglaterra, mas já estava no Brasil quando o Estado Islâmico se tornou um fenômeno (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Midiatização Hannah viveu por 15 anos na Inglaterra, país que, em 2017, era o quinto no mundo com maior número de acessos a conteúdo extremista online, segundo relatório do The New Netwar. Ela acompanhou, de lá, quando as chamadas novas mídias passaram a ocupar um lugar de destaque na disseminação de informações e notícias em locais onde as mídias convencionais eram altamente controladas.
Mas, quando o Estado Islâmico se revelou um fenômeno, inclusive de comunicação, Hannah já estava no Brasil."Quando os seguidores do grupo passaram a se multiplicar nas plataformas digitais, comecei a acompanhar o desenvolvimento das redes de comunicação que surgiam, seguindo, com atenção especial, os perfis de autodeclarados apoiadores que se comunicavam em inglês", afirma.O discurso, escreve no trabalho premiado, alcançava com mais facilidade jovens que não se sentiam acolhidos nos lugares onde viviam. Eram pessoas que se sentiam perdidas e marginalizadas, como Abdel-Majed Abdel Bary, rapper mais conhecido como L Jinny. Nascido no Egito em 1991, Bary se mudou com a família para a Inglaterra quando os pais conseguiram asilo político através da Anistia Internacional.
O pai de Bary havia sido preso e torturado no Egito durante o governo Mubarak, e já na Inglaterra, em 1998, voltou a ser preso sob acusação de integrar a Al-Qaeda. Não se conseguiu provar o vínculo, mas o dia em que a polícia invadiu a casa da família, Bary tinha apenas seis anos. Anos mais tarde, ele falou sobre isso numa de suas músicas:“Eu juro que o dia em que eles levaram meu pai/ eu poderia ter matado um policial ou dois, e eu nem olharia para trás/ Imagine que eu só tinha seis anos/ Só imagine o que eu faria hoje com um berro [gíria urbana para se referir a armas de fogo] carregado”.O estigma e a humilhação marcaram a família e foi se tornando muito difícil se estabelecer num lugar com tanta diferença cultural. Aos poucos, o rapper foi se identificando com o discurso do Estado Islâmico – e não necessariamente pela religião, mas pela cultura. Apesar disso, a desconfiança sobre os muçulmanos, nas últimas décadas, fez parece que religião e extremismo eram indissociáveis.
“A midiatização vertiginosa dos acontecimentos e seus desdobramentos contribuíram para uma naturalização, no imaginário hegemônico ocidental, da noção de que a fronteira entre o Islã e o extremismo violento é tênue, alterando a percepção sobre uma identidade religiosa compartilhada por 1.8 bilhão de pessoas, causando fricção e comprometendo a já frágil convivência religiosa em uma série de países no mundo”, aponta Hannah.
Racismo e xenofobia A trajetória de L Jinny é bem parecida com a de Mohammed Emwazi, nascido no Kuwait, mas que se mudou para a Inglaterra com a família em 1993, quando tinha seis anos. No Kuwait, a família passou a ser perseguidos após a Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991. Naquele contexto, explica Hannah na tese, lealdades locais poderiam custar a vida.
Na Inglaterra, a questão da lealdade poderia não ser um problema, mas Mohammed, assim como outros jovens muçulmanos de sua geração, não se encaixava. A situação ficou ainda pior após o ataque no metrô de Londres, em 2005.
“O sentimento de humilhação, associado ao lugar ocupado pelo mundo islâmico na contemporaneidade, também é um fator importante na crise de identidade e de lealdade que é parte do combustível para o processo de radicalização.”, aponta Hannah. Foi o que aconteceu com Mohammed.
A midiatização do episódio do 11 de Setembro e a cobertura jornalística, que deu grande notoriedade ao mostrar material de publicidade produzido e divulgado por grupos extremistas, sobretudo do Estado Islâmico, teve papel fundamental no alcance da mensagem desses grupos, defende Hannah. O último dos quatro jovens estudados por ela é o hacker Junaih Hussain, que falava pouco, mas vivia conectado.
O comportamento do jovem de origem paquistanesa, mas nascido em Birmingham em 1994, se destacava nas redes. Ele expôs seguidores da English Defense League, um grupo de extrema direita inglês que, em suas palavras, se esforçava para expulsar muçulmanos do país, e comandava ações contra a guerra do Iraque. Além de tudo, demonstrava que não se sentia aceito onde vivia.
Num dos ataques ao jornal britânico The Daily Mail, afirmava que o periódico havia envenenado os leitores contra imigrantes."Eu sou um extremista, eu me esforço extremamente para hackear websites e chamar atenção para alguns temas. Eu sou um terrorista. Eu aterrorizo websites e servidores. Mas os membros da EDL [English Defense League] são extremistas também. Eles se esforçam extremamente para expulsar muçulmanos do Reino Unido, e eles são terroristas. Eles aterrorizam comunidades e empresas muçulmanas locais", dizia uma mensagem deixada pelo rapaz em um dos sites que hackeou.Junaih não se destacava pelas armas. Mas, ainda assim, o hacker foi considerado perigoso o suficiente para estar no terceiro lugar da lista dos mais integrantes mais perigosos do Estado Islâmico. Em 2015, aos 21 anos, ele foi morto num ataque de drone dos Estados Unidos.
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Três teses defendidas na Ufba foram premiadas pela Capes em 2021
Além do trabalho defendido por Hannah no final do ano passado, sob a orientação do professor Messias Bandeira, outras duas teses desenvolvidas na Ufba também estão entre as 49 vencedoras do Prêmio Capes de Tese 2021: uma da área de artes e outra em sociologia.
Na área de artes, Diego Pizarro foi premiado com o trabalho defendido no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, orientado por Maria Albertina Silva Grebler, intitulado ‘Anatomia corpoética em (de)composições: três corpus de práxis somática em dança’. Já na área de sociologia, a vencedora foi Natasha Maria Wangen Krahn, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, orientada por Luiz Cláudio Lourenço, com o trabalho ‘Uma vida atrás das grades: Histórias de vida entrecortadas por internações e prisões’. Para Hannah, olhar de fora também é enriquecedor; pesqusiadores brasileiros devem se estabelecer, com perspectiva própria, com lugar de fala sobre o mundo (Foto: Paula Fróes/CORREIO) O trabalho de Hannah, intitulado ‘Algo em que acreditar: trajetórias de seguidores do Estado Islâmico na Inglaterra’, lhe rendeu uma bolsa de pós-doutorado.“A realização de uma pesquisa como a minha no Brasil, na UFBA, dissociada da comunidade à qual pertence a maioria dos jovens que são foco da análise, em um contexto em que os impactos da violência do terrorismo são pequenos e em que certos fatores institucionais afetam o trabalho de forma marginal, foi muito importante”, diz Hannah.“Esse olhar de fora é também enriquecedor, e acho fundamental nos estabelecermos como pesquisadores brasileiros, com perspectiva própria, com um lugar de fala nosso e situado sobre o mundo”, completa.