1º prédio da Bahia, Oceania é lembrança da época que Salvador queria virar Paris
Vizinho do Farol da Barra completa 79 anos neste sábado (20); conheça a história
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Gabriel Moura
gabriel.moura@correio24horas.com.br
“E aqui eu faço alguns doces para vender”, explicava, apontando para uma bancada na cozinha, a aposentada Tereza Maria Nascimento Santos, 75, quando o ranger da porta, seguido por uma voz suave dizendo “licença”, a interrompeu. Teca, como a idosa é conhecida, pediu uma pausa de alguns minutos para receber e, claro, fofocar com a vizinha. “Aqui é assim, o pessoal vai entrando. Somos uma grande família”, explicou.
Em uma época onde os vizinhos de porta mal sabem o nome um do outro, o Edifício Oceania, em frente ao Farol da Barra, é um prédio onde as relações interpessoais acontecem tal qual no século passado, honrando a idade do quase octogenário imóvel. Neste dia 20 de agosto, o primeiro prédio condominial da Bahia comemora 79 anos.
Uma idiossincrasia de cidade do interior em frente ao maior cartão-postal de Salvador. As portas ficam abertas, todos se conhecem, e, claro, sempre há alguém na janela atento a tudo que acontece. É um “esses meninos de fulana do apartamento X são fogo”, seguido de causos mais apimentados, como “foi neste fosso que um figurão da alta sociedade baiana empurrou uma garota de programa muitos anos atrás.”
Sim, um fosso. O Oceania, que por fora parece um “tijolão”, é, na verdade, um prédio de concreto oco. Bem no centro do prédio, no térreo, há uma espécie de praça, de onde é possível ver o céu. Já nos níveis superiores, corredores conectam as portas de serviço dos apartamentos que ficam no mesmo andar, permitindo a mencionada quase livre circulação entre as unidades. Foto: Paula Fróes/CORREIO São, ao total, 48 apartamentos divididos em oito andares residenciais - seis por andar. Todos contam com três quartos, mas com quatro opções de planta, cujos tamanhos variam de 120 a 211 metros quadrados. Atualmente, apenas uma unidade não está ocupada.
A maioria dos proprietários é dividida em dois grupos: idosos, incluindo muitas viúvas, que por lá vivem há muitas décadas, ou jovens abastados que usam o local para veraneio em Salvador. “Wagner Moura mora naquele ali”, aponta Teca. “Ele é uma gracinha. Sempre vem aqui na porta, me procura, conversa comigo”, revela a aposentada. Lázaro Ramos e Vladimir Brichta também possuem unidades no Oceania. No passado, Gilberto Gil, Pelé, Xuxa e até Bono Vox, do U2, eram comumente vistos circulando pelo edifício.
No entanto, o Oceania não é igual a seus colegas Morada dos Cardeais e Mansão Wildberger, mais conhecidos pelas alcunhas de 'Prédio de Ivete' e 'Prédio de Bell', respectivamente. Ele brilha por si só.
‘Não saio daqui por nada’ Enquanto o Farol da Barra é uma orquestra regida por ambulantes berrando suas ofertas etílicas e turistas se aglomerando em busca de uma foto com o melhor ângulo, alguns andares acima a calmaria reina. Tirando algumas buzinas eventuais, tudo o que se ouve e vê em uma janela do Oceania é o mar.
“Aqui eu vejo o mundo da minha janela. Aparece uma baleia e saio ligando para todos os meus vizinhos avisando. Só que aí o bicho foi embora e me chamam de mentirosa. Aí eu digo que tirei foto. É uma bagunça, todo mundo é amigo. Conheço todos do bairro. Dos guardadores de carro até os bandidos. São eles que tomam conta de mim”, conta Teca, que mora no Oceania desde 1988. Foto: Paula Fróes/CORREIO Ela se mudou para morar com a irmã, que era uma das costureiras mais requisitadas pela ‘high society’ soteropolitana. Após a morte dela, ela herdou o apartamento, onde mora sozinha. “É a melhor coisa do mundo morar nesse prédio. Não quero sair daqui por nada”, conta.
Em suas décadas oceânicas ela colecionou diversas histórias. Como a vez em que um grupo jovens bêbados resolveu pregar uma peça e colocou um jegue no elevador em direção a casa de um amigo. “Brincadeira sadia. Melhor do que matar”, passa pano.
Lá também ela foi testemunha de um dos crimes mais famosos da história de Salvador, o assassinato do holandês veterano da Segunda Guerra Mundial, Eric Cornellis Loeff. “Um homem muito mal-educado”, pontua Teca sobre a personalidade do europeu.
Em 22 de dezembro de 1989 um homem vestido com roupa de médico entrou por uma das 4 portarias do edifício, subiu o elevador, cometeu o crime e foi embora sem deixar vestígios. O assassinato segue até hoje sem solução.
Outras muitas mortes aconteceram por lá, a maioria por causas naturais. “Todo ano é um funeral diferente”, conta Teca.
O local, inclusive, foi construído em cima de esqueletos. Durante as escavações para a colocação das primeiras vigas, foi descoberto que o terreno abrigava um cemitério indígena. Nas obras, operários também faleceram.
“Tem gente que diz que aqui é mal-assombrado, mas eu nunca vi nada. Não tenho medo dos mortos, tenho medo é de cobra”, brinca a moradora.
Por um momento, quase que o próprio Oceania morria. Nos anos 90 o cartão-postal estava bastante malcuidado, fazendo o preço dos imóveis despencar. Dentre os que aproveitaram a decadência para garantir a sua unidade estava a família do administrador Diogo Souto, 36, que mora lá desde 1997.
“Quando minha mãe veio para o prédio, foi um momento estratégico, onde ele não estava valorizado. Depois teve o 'boom' do Carnaval, com o camarote Expresso 2222 que funcionava aqui. Também aconteceram algumas reformas que o deixaram valorizado como vemos hoje”, relata.
Na época em que foi morar no Oceania, funcionava no térreo a boate Lótus, a mais requisitada de Salvador no início dos anos 2000. “Para mim era ótimo, que estava começando a sair e tinha o melhor local logo abaixo de mim. Mas para os moradores dos andares inferiores era um inferno, pois a boate não tinha um bom isolamento acústico. Lembro de entrar no elevador e ainda sentir a pulsação da música tremendo a cabine”, conta o administrador.
Foi justamente esse o motivo do fechamento do clube. Após diversas ações judiciais movidas por condôminos contra a empresa, a Lótus fechou. Mas o Oceania seguiu estratégico para Diogo aproveitar a juventude.
“Sempre que alguém descobre que eu moro no Oceania fica maravilhado, surpreendido. Muitas pessoas acham que ninguém mora aqui, que é um hotel ou lugar comercial. Mas a surpresa maior é quando me visitam e encontram pela primeira vez a vista mais bonita da cidade. Se eu, que já estou acostumado, me apaixono todo dia, imagine um debutante?”, relata Diogo.
O prédio que mudou a história de Salvador No início do século passado, Salvador era uma metrópole conservadora e decadente. Enquanto a elite se apegava as glórias e tradições do passado, a cidade era superada por outras capitais. Se em 1830 era a segunda mais populosa do Brasil, 100 anos depois foi ultrapassada por São Paulo e até Recife. Mas o nariz em pé seguia lá.
Para mudar esse cenário e introduzir a cidade numa modernização tardia, o governador José Joaquim Seabra, nos anos 10, se inspirou em Paris: saiu demolindo tudo para construir largas avenidas para colocar a cidade nos rumos do progresso. O principal símbolo foi a avenida Sete de Setembro, criada para desafogar o Centro Antigo, onde vivia a quase a totalidade dos cerca de 200 mil moradores. A via começava na Praça Castro Alves e seguia até o Farol da Barra.
A arquitetura também foi importada da França, o Art Déco. Neste estilo foram construídos prédios como o Sulacap, A Tarde, Cine Teatro Jandaia, Instituto do Cacau, Palácio dos Esportes, Hidroporto da Ribeira e até a reforma do Elevador Lacerda.
Na questão habitacional, os soteropolitanos que se aglomeravam no Centro Antigo viviam em casas. O primeiro prédio da cidade foi construído nessa década, o Dourado, na Graça - também um Art Decó. No entanto, ele ainda era unifamiliar, pois foi concebido pelo patriarca para acomodar seus diversos filhos.
“Na época havia um patriarcalismo muito forte em Salvador, onde a elite precisava ter seu pedaço de terra para morar com os seus. Após os Dourados, outras famílias ricas também construíram edifícios para seus filhos, como o Maísa, Colombo, Judite… Mas essa cultura de ser vizinho de um ‘estranho’ era vista como algo negativo. Era um cortiço”, narra o professor de arquitetura Francisco Senna.
A construção que mudou a forma de se morar na capital baiana é a junção desses dois elementos. Todo trabalhado no Art Decó e estrategicamente posicionado ao fim da novíssima avenida Sete, o Oceania foi o primeiro edifício condominial na capital baiana.
A construção começou em 1939 por iniciativa de um grupo liderado pela família Costa Pinto – a mesma da Mansão Carlos Costa Pinto. Além dos apartamentos amplos, confortáveis e luxuosos, o projeto também previa uma parte comercial e um cassino. Baiana em frente ao Oceania na década de 40 (Foto: Voltaire Fraga) Mas os problemas começaram cedo, principalmente causados pela Segunda Guerra Mundial. Naquela época, o Brasil não produzia aço, cerâmica, mármore e concreto de qualidade suficiente para atender aos padrões ‘Oceania’, então tudo foi importado. Mas como os materiais foram destinados ao confronto bélico, a obra atrasou e só terminou em 1943.
Outro problema foi o preço do pioneirismo. Na época não havia uma legislação para condomínios simplesmente porque eles não existiam. Não tinha o conceito de ser dono de apartamento. Ou você tinha todo o prédio, ou não tinha nada. Por isso, foi feita uma manobra jurídica para contemplar os proprietários: eles compraram ações na empresa Oceania S.A. e, como “recompensa”, ganhavam os apartamentos.
"O Oceania inseriu Salvador nos caminhos da modernidade. Ele inaugurou um conceito de morar com apartamentos grandes, confortáveis e ventilados, além de toda a sua imponência", conta o historiador Rafael Dantas.
O prédio era um símbolo da “Salvador do futuro”, tanto que a intenção original é que outros Oceanias fossem construídos. Por isso uma das faces do prédio não possui janelas. Esse era o plano da época: fazer com que a orla da avenida Oceânica tivesse uma arquitetura similar à vista nas ruas de Paris ou na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, com diversos prédios de tamanho e estilo similares, colados uns aos outros. Foto: Paula Fróes/CORREIO No entanto, anos depois o gabarito da região foi alterado e, atualmente, não é permitido construir edifícios daquele tamanho na Oceânica. E foi justamente essa alteração que ajudou o Oceania a se tornar tão icônico, pois arranha sozinho os céus da Barra.
Apesar da “ilegalidade”, não há risco da construção ser demolida, pois, em 2008, ela foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).
Viver como no século passado As marcas do período em que o Oceania foi construído estão presentes em todo o edifício, como nas portas que conservam um olho mágico enorme. Durante uma reforma, feita em 2015, a intenção foi manter o aspecto original. No elevador, por exemplo, foi colocado mármore para combinar com o piso do hall de entrada.
Dentro dos apartamentos, há sala de visita e jantar. Na época não existia o conceito de sala de televisão. Banheiro existe apenas um: uma enorme casa de banho, no centro da residência, a ser usada por todos os moradores. Não há suíte no projeto original, pois não havia esse conceito na época.
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No entanto, são poucas as unidades que mantém a planta original. A maioria passou por reformas extremamente trabalhosas. “O concreto usado aqui é um dos melhores do mundo. Por isso, quando alguém vai quebrar uma parede, o trabalho leva o triplo do tempo de uma construção comum”, revela uma funcionária do prédio que não quis se identificar.
Mas nem tudo são flores. A instalação de internet e televisão à cabo é um desafio, pois na época não haviam essas tecnologias. Logo, não havia no projeto original um caminho para o cabeamento. Obras posteriores amenizaram o problema, mas ele ainda existe.
Também não há opções de lazer consideradas padrão em prédios de alto nível atualmente, como quadras e piscina. O Oceania ocupa toda a área do terreno, não deixando espaço para a novas instalações.
Mas o principal problema são as vagas de garagem. Nos anos 40, poucos soteropolitanos tinham carro, mesmo entre os mais ricos. Então foram projetadas apenas 36 vagas para os 48 apartamentos. Como elas não possuem lugar marcado, um manobrista sempre fica de plantão para tentar armazenar o maior número de veículos no espaço reduzido.
Aliás, falando em manobristas, uma curiosidade: no projeto original, o terraço, onde fica o salão de festas, abrigava quartos para os motoristas dos ricaços. Anos depois o local foi reformado e hoje abriga novos apartamentos.
Caro, mas depende Todo esse luxo e história tem um preço, e não é barato. Raramente uma unidade do edifício fica a venda e, quando aparece, supera os R$ 2 milhões, valor muito acima do cobrado pelo metro quadrado da região.
A forma mais “acessível” de aproveitar tudo que o Oceania tem a oferecer é aluguel de diárias. Algumas unidades estão disponíveis para locação no AirBnb ao custo de, em média, R$ 1 mil por dia. Se quiser passar um mês lá, a negociação é feita diretamente com o locatário e custa entre R$ 7 mil e R$ 12 mil. O rapper Baco Exu do Blues, por exemplo, passou uma temporada por lá recentemente.
O Carnaval é um caso à parte. A maioria dos idosos que residem por lá não tem mais pique para pular atrás do trio e morar por lá no período de festa é extremamente desagradável por conta do barulho e dos transtornos. Fazer um mercado se torna uma missão quase impossível. Mas os moradores não reclamam, muito pelo contrário.
Boa parte aluga as suas unidades por preços que ultrapassam os R$ 20 mil durante o período das festas. “Depois que minha irmã morreu, perdi a renda dela e hoje moro aqui sozinha com minha aposentadoria e o dinheiro que ganho vendendo os doces. O aluguel do Carnaval me ajuda bastante a pagar as contas do ano”, comemora Teca.
E sendo proprietário, manter o apartamento em si é relativamente barato. Um prédio quase centenário, que precisa de manutenção quase que diária, em área nobre e com apartamentos grandes. O preço do condomínio deveria ser caro, não é? Errado. Por conta da localização estratégica, o prédio aluga o seu terraço para diversas provedoras de TV, internet e celular que instalam antenas por ali. Com isso, os moradores pagam em média R$ 400 mensalmente.
Se o teto é alugado, o térreo por muitas vezes já seguiu o mesmo caminho. Nas instalações do Oceania já funcionaram teatro, cassino, cinema, sauna, boate e até mesmo uma icônica unidade do saudoso supermercado Paes Mendonça. Em breve, um cerimonial deve começar a operar em um dos espaços comerciais. Loja 2 do Paes Mendonça em 23 de dezembro de 1989 (Foto: Fernando Amorim/Arquivo CORREIO)