Assine

Quem são as pessoas que ganham R$ 6 mil para criar memes políticos


 

Como agem os profissionais do 'Lado B' das campanhas, que trabalham com o lado cômico, as fofocas — e as fakes

  • Fernanda Santana

Publicado em 20/07/2024 às 05:00:00
O termo ‘Lado B’ ficou mais institucionalizado na última década. Crédito: Quintino Andrade

Ao avaliar um vídeo crítico ao candidato adversário do seu cliente, uma marqueteira política sentenciou: "Refaz, porque isso tá bonito". Precisava ser um pouquinho mais tosco.

O conteúdo voltou três vezes até estar no ponto: qualidade de imagem baixa para carregar rápido no celular, as cores preto e branco para dramatizar e música no fundo.

Para uma das frentes das campanhas políticas, o que está em jogo é esse domínio da ciência do "feio". Ela é chamada de ‘Lado B’, o que sugere qual é sua função, e também que há a banda oficial.

O 'Lado A' é o programa da propaganda eleitoral, o jingle, as postagens nas contas oficiais do candidato nas redes sociais com a estética e cores pré-estabelecidas, as inserções em rádio. Já o B:

"São conteúdos estratégicos para ‘bater’ no adversário. Diria até que são até mais bem pensados que o ‘A’, porque precisa fazer sem nomear, sem estética do candidato, mas com potencial de furar a bolha e viralizar", resume a jornalista que trabalha com campanha há mais de 10 anos, e mandou refazer o vídeo.

Diferentemente de alguns colegas, ela assume que meme não dá em árvore. A equipe que pensa nos conteúdos com abordagem mais dramático e cômico, e às vezes com cara de ‘tiozão’ do whatsapp, é escolhida a dedo.

Faz parte dela tanto profissionais de comunicação, como jornalistas e publicitários, como jovens alfabetizados na internet, graduados ou não. Por mês, eles ganham até R$ 6 mil.

Como os profissionais 'pescam' o viral

O pré-requisito é que todos saibam pescar os assuntos que possam descrebilizar o adversário, mas de um jeito diferente. Todos os dias são os grupos de mensagens em aplicativos que fornecem o combustível dessa produção.

A equipe de interação faz uma ronda e pauta o que interessa para cada lado da campanha correr em uma frente. Claro, essa rotina varia e há também a autonomia: o próprio ‘Lado B’ pode definir seu ritmo de produção e pautas, ou atuar de mãos dadas com o lado oficial.

Veja também

O vídeo que a marqueteira achou bonitinho demais para os grupos digitais, por exemplo, apareceu no ‘Lado A’ da campanha, mas com um aspecto mais pasteurizado.

No metiê, os estrategistas sabem a quem recorrer para formar equipes paralelas, já que as agências não divulgam os serviços de ‘Lado B’. Só que nem sempre eles vão à busca.

O próprio ‘Lado A’ pode agir como ‘B’, a depender da necessidade. Tanto é que os profissionais ouvidos para esta reportagem pediram sigilo e que os exemplos fornecidos por eles fossem abordados de maneira generalista.

"Campanha é meio sigiloso mesmo. Ninguém quer que sua estratégia seja divulgada e os profissionais precisam ter cuidado", afirma uma integrante do ‘Lado B’.

Padre Kelmon acabou virando meme após episódio. Crédito: Reprodução

O pesquisador Camilo Aggio, que estuda comunicação política e é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem outra hipótese: "Desvinular uma mensagem dos símbolos claros de uma campanha faz com que essa mensagem tenha um tom independente".

E isso pode ser bom quando os políticos são vistos com desconfiança. "Uma maneira de conferir credibilidade a uma mensagem seria manter um certo anonimato ou desvinculação, ainda que ela seja falsa", explica, sobre um movimento que também ocorre fora do Brasil.

A recruta e a ação do lado B

O termo ‘Lado B’ ficou mais institucionalizado na última década. Uma jornalista acompanhou essa transição.

No início, o principal material do ‘Lado B’ era extraído de falas ditas por adversários em programas de rádio que, depois, eram tiradas de contextos e disparadas em email e SMS. "Ouvia todos os programas de rádio para ver pontos de oportunidade", lembra.

Os meios de escoar esses conteúdos, hoje, são as redes sociais, sobretudo os aplicativos de mensagem. Neles, cabem os vídeos, mas também os textos, às vezes com erro de português para simular informalidade, áudios e memes, imagens estáticas com textos para compartilhar ideias.

Consulta está aberta. Crédito: Isaac Nóbrega/PR

A recruta dos profissionais que produzem esse material começa no início do ano eleitoral. Se houver necessidade extra — o que pode acontecer a depender da temperatura da disputa — contrata-se mais gente. Também ocorre de uma campanha alavancar apenas com a equipe oficial, e mudar de rota se o clima esquentar.

Uma publicitária foi contratada por um candidato que tentava reeleição em um interior de 30 mil habitantes nas últimas eleições municipais. A rigor, ela era do ‘Lado A’. Mas, no ápice da campanha, surgiu um boato:

O irmão do oponente poderia estar envolvido em um esquema suspeito, onde morava.

A equipe, então, se juntou para produzir mensagens com tom de denúncia para disparar em listas de transmissão no Whatsapp, com a ideia de vincular a imagem dos dois.

“A ideia era dar a impressão de algo ‘vazado. É gincana, parece briga de torcida’”, conta. “Eles faziam a mesma coisa com o candidato que atendíamos”, complementa.

Em cidades menores, esse clima de fofoca é o combustível do ‘Lado B’, o que reflete pelo menos duas características da política dos interiores.

A primeira delas é que a lógica do antagonismo entre candidatos é mais marcante nessas regiões, com dois grupos políticos se alternando no poder. A proximidade é outro ingrediente considerado.

“Em cidades maiores, não há muito essa ligação entre as pessoas. Não é que esse conteúdo moral, de fofoca, não seja importante", explica a estrategista digital e especialista em marketing político Cláudia Guimarães.

"Mas em uma metrópole, você não encontra o prefeito almoçando na churrascaria, por exemplo, mas no interior sim, você o conhece, então claro que esse conteúdo vai ter um peso diferente em cada local, e essa clima de fofoca ganha mais força”, acrescenta.

Nos interiores, tem evidência também o ‘Lado B’ "orgânico", ou seja, apoiadores que trabalham voluntariamente para as campanhas.

Nesse caso, o flerte com as fake news acontece às claras - e as campanhas oficias, claro, aproveitam para dizer que não têm nada a ver com isso.

Isso porque, no Brasil, o Código Penal prevê três tipos crimes ligados a mentiras: calúnia, difamação e injúria. O Código Eleitoral também pune propagação de fake news.

O Tribunal de Justiça da Bahia não respondeu se há pessoas julgadas por esse motivo. O Tribunal Regional Eleitoral também não se pronunciou.

Mas o tema notícias falsas aparece nas reuniões. Uma jornalista lembra que, durante um encontro pré-contratação para o ‘Lado B’, o estrategista estabeleceu os limites.

“Disseram que a gente não ultrapassa o limite da verdade, coisas assim… que não inventariamos nada, que apenas usamos a comunicação para pegar aquela informação e torná-la acessível com uma camada cômica”, conta.

Ao fim da campanha, se tivesse aceito a proposta, ela receberia R$ 30 mil. A produção diária seria submetida a uma equipe de triagem, que validaria ou não a publicação.

Quais são os marcos do 'lado B' da política?

A dualidade dos discos de vinil é o que inspira o nome das divisões do trabalho político em lados. Na camada ‘A’ do bolachão, está a face mais comercial dele. Já na outra, rodam as músicas mais experimentais. É mais ou menos assim na política, só trocar os personagens.

“Toda campanha é focada em falar bem do próprio candidato e apontar as fragilidades do adversário. A diferença é a forma que isso vai ser feito”, reforça o pesquisador Yuri Almeida, que há 15 anos atua como analista e agente das campanhas eleitorais.

“O lado principal tem preocupações estéticas no conteúdo que produz, não vai se meter em fofocas, tem responsabilidades bem definidas”, completa Almeida.

Fóruns anônimos na internet . Crédito: MArcello Casal Jr. /Agência Brasil

O ‘Lado B’ sempre existiu, a diferença são os meios em que ele age e seu alcance. Antes da internet, por exemplo, ele operava na televisão, como aquela carta na manga. Um marco foi quando o então candidato presidencial Fernando Collor, no programa eleitoral, acusou o rival Lula (PT), atual presidente da República, de pressionar uma namorada a abortar. Era 1989, ano da primeira eleição depois da redemocratização do Brasil, e o ‘Lado B’ já mostrava ao que veio.

Na era digital, um dos divisores de águas é a campanha presidencial de 2014, na avaliação de Yuri Almeida. Concorriam à Presidência Aécio Neves, pelo PSDB, Dilma Rousseff, pelo PT, e Marina Silva, pela Rede. Um dos adversários da petista, não se confirmou qual, produziu duas fake news sobre ela: que ela era a favor do aborto e iria fechar igrejas. "Na época, identificamos o quanto isso foi danoso”, pontua Yuri Almeida.

A guinada política de Jair Bolsonaro (PL) - se faltava algo - institucionalizou de vez o ‘Lado B. Desde 2021, ele foi condenado a pagar pelo menos quatro multas por fake news.

"O bolsonarismo e sua máquina de propaganda digital inaugura no Brasil uma forma agressiva de produzir conteúdo. Óbvio que falamos muito das fake news, mas há outros elementos: o modo como eles conseguiram compreender a linguagem, a gramática, os mecanismos de funcionamento desse tipo de comunicação. Coisa em que a esquerda ainda está patinando", avalia o pesquisador Camilo Aggio.

Não que faltem exemplos da ação da esquerda nas cochias. Um deles é a tentativa de condicionar, oficial e extraoficialmente, a existência de políticas públicas ao seu governo.

Mas, para falar dos limites do ‘Lado B’, é preciso recorrer a associações, acredita o advogado Thiago Bianchi, presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB-BA).

O uso de inteligência artificial, por exemplo, cada vez mais comum não são nas campanhas, é permitido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), desde que a utilização seja identificada.

O uso de inteligência artificial, por exemplo, é permitido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), desde que a utilização seja identificada.

“Já a resolução 23.610 de 2019 e a lei 9.504 tratam da liberdade de expressão na internet, praticamente dizendo que o juiz não vai coibir. Nos aplicativos de mensagem, tem acontecido uma mínima interferência, porque existe um parágrafo que considera esses grupos como grupos fechados, que não teria impacto grande nas eleições”, explica.

O que essa resolução destaca, no entanto, é que a Justiça pode analisar conteúdos vexatórios. Se houver essa característica, há formas de identificar e responsabilizar os autores, pois cada ação digital deixa uma pegada.

Só na última semana, brinca o advogado na ausência de dados oficiais, “tem uns três precedentes sobre isso”.

Um dos casos que ele atendeu gira em torno de um processo judicial tirado de contexto para atacar uma candidata. À primeira vista, parecia um conteúdo produzido por um apoiador comum.

“Mas se viu que era do grupo adversário, que tinha a intenção de dizer que a candidata era uma criminosa quando, na verdade, o processo tinha a absolvido”, afirma o advogado.

Uma das jornalistas que conversou com a reportagem já se deparou com conflitos éticos e morais ao produzir conteúdos com os quais discordava. "No fim, é saber dividir as coisas", diz ela, repetindo quase que um mandamento do ‘Lado B’.