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Facção impede distribuição de 'santinhos' e eleitores evitam votar em áreas de conflito


 

CORREIO percorreu seções cravadas em regiões disputadas por facções criminosas em Salvador

  • Bruno Wendel

  • Fernanda Santana

Publicado em 07/10/2024 às 05:00:50

A Escola Municipal Olga Mettig, no bairro de Valéria, está em uma fronteira: pouco mais de 20 metros separam duas áreas dominadas por facções criminosas diferentes. A disputa pelo poder não deu trégua nas eleições deste domingo (6). A uma hora do início da votação, um grupo foi proibido de distribuir ‘santinhos’. Mas quem impediu o crime eleitoral não foram policiais — a facção Katiara expulsou a equipe, proibida pelos criminosos de estar lá por morar em uma área dominada pelo Bonde do Maluco (BDM).

A infiltração de grupos criminosos nas eleições, direta ou indiretamente, deixa rastros pela cidade. “Aqui o pessoal fica de olho, na porta, te observando. Eles não querem saber não, se atravessa a rua, a rua já é ‘deles’”, contou um morador de Valéria que, por motivo de segurança, pediu para não ser identificado, e é um dos 2.261 eleitores que votam na Olga Mettig.

Essa vigília não é novidade. Nas eleições presidenciais de 2022, por exemplo, um grupo de três pessoas armadas montaram guarda em uma esquina do outro lado da pista para checar quem ia e vinha. “Fui atualizar minha biometria e o TRE (Tribunal Regional Eleitoral) queria me colocar para votar lá no Ítalo [Escola Municipal Professor Ítalo Gaudenzi], em Fazenda Coutos. Pedi pelo amor de Deus que não. É arriscado”, completou.

No fim de setembro, o setor de inteligência da Polícia Militar da Bahia (PM) realizou um estudo para mapear o nível de interferência de facções durante as eleições. O levantamento tinha sido iniciado em junho. “Nestas últimas eleições, a saber, desde a majoritária para presidente do último pleito, as facções criminosas tem tentado impor suas escolhas aos eleitores”, contou um policial.

O estudo analisou diferentes cenários em comunidades conflagradas pelo tráfico de drogas, embora o policial tenha destacado quatro bairros: Nordeste de Amaralina, Valéria, Bairro da Paz e Itapuã — nestas últimas duas localidades, inclusive, eleitores circulavam, neste domingo, cercados por muros pichados por mensagens de luto pela morte de um traficante na semana passada. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) foi acionada, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.

Em frente ao Centro Estadual de Educação Profissional Luiz Pinto de Carvalho, em São Caetano, uma moradora do bairro comentou a interferência da violência urbana e das facções nas eleições. “Eles querem impor em quem o povo tem que votar ou não, mandando áudio, espalhando terror”, contou, um pouco afastada da multidão, a mulher. A reportagem não teve acesso aos supostos áudios.

A reportagem foi abordada por um homem vestido de amarelo que proibiu a captura de imagens no local.

A dois quilômetros de distância, na Escola Municipal Francisco Mangabeira, outra moradora corroborou a versão da vizinha. “Há três anos a situação aqui ficou feia. É uma guerra mesmo. Minha sorte é que moro na rua principal, e venho logo cedo [votar], e não trago meu celular, para evitar problema”, disse a jovem, que saiu de casa às 7h40. “Depois das 16h eu já não saio mais, o clima pode esquentar muito”, completou.

Dois policiais estavam de plantão na escola. Próximo, na entrada de um beco na Ladeira do Cacau, um homem vestido de laranja, com arma na mão, conversava com outro rapaz, sem camisa.

“Esse fenômeno de interferência de facções [nas eleições] está ocorrendo no Brasil inteiro: quem é o ‘dono’ do território exerce todos os seus ‘supostos direitos’, o que inclui tutelas e o voto das pessoas. Toda vez que há controle de território, não será apenas controle dos corpos, mas das escolhas também”, explica Sandro Cabral, professor de estratégia e gestão pública no Insper e licenciado da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

“E aí o crime organizado descobriu que é uma forma de perpetuar negócios firmando alianças com o poder [do Estado]. Em São Paulo, por exemplo, estamos vendo os casos de vereadores relacionados ao PCC [facção Primeiro Comando da Capital]. Então, por que em Salvador seria diferente? Essas denúncias não trazem surpresa”.

O pesquisador destaca, no entanto, que medidas paliativas (como a alteração de zonas eleitorais) não estancará a inserção das facções na política.

“No dia a dia, o domínio do território continua, como impedindo campanha, coagindo população para que vote. O que vai resolver é a presença no Estado, enquanto o território for ocupado por crime organizado, isso vai acontecer. Quem sofre fundamentalmente são as pessoas que estão lá”.

Esvaziamento de colégios eleitorais é associado a avanço de facções

Na porta do Colégio Estadual Ieda Barradas Carneiro, no Alto do Coqueirinho, alguns eleitores estranharam o movimento: o local, que costuma ser atravessado por filas quilométricas, estava quase vazio. “Nas duas últimas eleições, tive que vir à tarde, porque pela manhã não dava, de tão cheio. Isso aqui era lotado de gente. Hoje, está tranquilo”, disse um eleitor, às 10h.

Colégio Estadual estava mais vazio, segundo eleitores. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Segundo ele, a redução está associada às represálias das organizações criminosas. A quantidade de pessoas que votam no colégio, segundo o TRE, é 3.136 eleitores, distribuídos em sete seções. “Com a chegada do Comando Vermelho, quem mora em outra região sequer pode pôr os pés aqui, principalmente o pessoal do Bairro da Paz. Lá é BDM”, conta ele, antes de detalhar como foram as semanas pré-eleições.

“Muita gente que está com medo dessa guerra não veio. Recentemente, o BDM passou a atacar a região do KM-17, que é aqui perto”, relatou, fazendo referência à madrugada de terror do último dia 24, quando moradores do KM-17 foram surpreendidos por meia hora de tiroteio. Durante o dia, o posto de saúde e as escolas do entorno não funcionaram.

Outra eleitora também atribuiu a redução de pessoas na escola às organizações criminosas. “Isso nunca aconteceu. Aqui sempre ficava gente esperando para votar. Hoje, tem mais gente fazendo ‘boca de urna’ do que eleitor”, afirmou. Embora a Polícia Militar estivesse no local, para ela, isso não é garantia de segurança.

“As coisas acontecem na ida ou na volta, e por aqui está cheio de ‘olheiros’ (informantes deles), tomando conta de tudo”, complementou.

“O cara acabou de falar aqui que botaram ele para votar no Lobato, e ele não ia, porque era violento, e ele mora em São Caetano. Aí ele preferiu não arriscar”, contou outra eleitora, em São Caetano.

O Centro Estadual de Educação Profissional Luiz Pinto de Carvalho, segundo uma funcionária do local, estava mais vazio. “Tenho certeza que isso tem a ver com essa briga de facção”, disse. Esta reportagem foi finalizada antes da divulgação do balanço de votação por zona eleitoral.

No Rio de Janeiro, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) chegou a alterar 53 locais de votação em dez municípios do estado, devido a esses locais estarem mais vulneráveis a ações do crime organizado. O TRE da Bahia não informou medidas relacionadas ao tema no estado.

Na última semana, o partido União Brasil afirmou que a facção criminosa Comando Vermelho proibiu a candidata à prefeitura de Lauro de Freitas, Débora Regis, de entrar no bairro de Portão.

Quatro deputados — do União Brasil e do PSD — também disseram que essa situação se estendeu a Camaçari, onde o candidato do União Brasil à prefeitura, Flávio Matos, foi impedido de realizar atividades eleitorais.

O Ministério da Justiça, que gere a Força Nacional de Segurança Pública, informou que não pode receber solicitações diretas feitas por partidos e acrescentou não ter recebido nenhum pedido formal relacionado ao fortalecimento da segurança nas eleições devido à ação de facções.

O presidente do Sindicato dos Policiais Civis da Bahia, Eustácio Lopes, confirmou que há partidos políticos que precisaram ter autorização do tráfico para entrar em determinadas regiões.

“Lideranças locais fazem um intermédio entre a política e o tráfico. O que ocorreu no Rio de Janeiro há 20 anos está acontecendo agora na Bahia”, disse ele.

Para Eustácio, as facções querem traçar alianças com alguns grupos políticos para eleger representantes e, assim, selar “pactos de paz” e fortalecer sua atuação.

“O tráfico usa a política para que o Estado tenha cada vez menos interferência possível. É uma troca de favores, uma tentativa de estabelecer uma convivência para que essas facções continuem atuando. Alguns políticos também podem achar que estão se beneficiando disso”, avaliou.

Não há informações sobre investigações em andamento no TRE sobre as relações entre políticos e criminosos. Na última terça-feira, o presidente do órgão, desembargador Abelardo da Matta, e o secretário da Segurança Pública do Estado, Marcelo Werner, se reuniram para tratar dos últimos detalhes da segurança das eleições.

No encontro, Matta pediu ao secretário uma “atenção especial das forças policiais” em 24 cidades (confira lista abaixo). O TRE não explicou o motivo, mas a lista inclui municípios como Camaçari e Lauro de Freitas.

Ruben Dário fica em área disputada por facções e registrou, em uma década, as mortes de 116 estudantes. Crédito: Marina Silva

'No fogo cruzado', diz mesária

O Colégio Estadual Rubén Dario, onde 6.582 pessoas votam, teve um dia tranquilo, ao contrário dos anos anteriores. A instituição de ensino está cravada em uma região de confrontos nos bairros de Santa Mônica, São Caetano, Boa Vista de São Caetano e Fazenda Grande do Retiro, disputados pelas duas maiores organizações criminosas em atuação do estado — o Comando Vermelho e o Bonde do Maluco.

“Hoje a situação aqui está mais calma, toda hora recebemos a visita da polícia. Mas, nos anos anteriores, a situação aqui não era nada fácil. A gente vinha trabalhar com o coração na mão diante do fogo cruzado”, diz ela, que há cinco eleições é escalada como mesária na escola.

A mulher contou que, antes do aumento das rondas policiais e da elevação de um muro ao redor do colégio, os bandidos conseguiam pular facilmente a cerca para invadir o espaço, inclusive em dias de eleição. “Quando a polícia vinha, já não tinha mais nada, mas o caos já estava instalado”, conta.

Já outro mesário da escola relatou que, em outra eleição, uma dupla de policiais foi rendida por traficantes dentro do Rubén Dario. “Eles entraram e miraram neles. Depois, tomaram as armas dos PMs e fugiram”, conta. O colégio, nos últimos 10 anos, teve ao menos 116 estudantes mortos. O fato foi revelado com exclusividade pelo jornal CORREIO em agosto, na série de reportagens Arquivo Morto.

A interferência de facções em eleições é mais antiga do que se pode imaginar. A proibição do uso de celulares e câmeras em cabines de votação, adotada em 2008, por exemplo, foi uma reação do TRE-RJ a informações de que traficantes e milicianos estavam obrigando eleitores a registrarem seu voto na urna, para comprovar que estavam votando nos candidatos indicados por eles.

A medida acabou sendo adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para todos os estados nas eleições municipais daquele ano e, depois, incorporada à legislação eleitoral em 2009.