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Apoio de família e amigos ajuda a superar cancelamentos no ambiente digital


 

Ataques de ódio causam isolamento e depressão em pessoas famosas ou anônimas, e escolas têm discutido a questão

Publicado em 22/09/2024 às 11:00:00
Cancelamento digital. Crédito: Thainá Dayube/ CORREIO

Qual a relação entre uma grande passeata de fãs vestindo camisetas roxas, nas Filipinas, e a educação midiática? No dia 8 de setembro, milhares de admiradoras de todas as idades do grupo BTS fizeram uma marcha nacional com cartazes para a realização da “Purple Walk of Love”, no Ayala Triangle Gardens, em Makati. A manifestação teve o objetivo de combater desinformação, fake news, cyberbullying, cancelamento digital e, ainda, alertar para a importância do letramento midiático e os efeitos nocivos que o movimento de hatters pode causar à saúde mental e à vida de uma pessoa, seja ela famosa ou não.

O evento foi motivado principalmente pelo cancelamento digital sofrido pelo rapper Suga, um dos cantores do grupo de K-Pop de maior sucesso. Após um jantar, em uma noite de folga do serviço militar, o artista voltava para casa guiando um patinete elétrico e, ao derrapar, acabou caindo do veículo em frente à entrada do prédio onde mora. Isso foi o suficiente para que policiais fizessem o teste, comprovando que ele havia bebido.

Suga teve a carteira de motorista suspensa e, partir daí, passou por semanas de polêmicas envolvendo seu nome: vídeos falsos veiculados em noticiários, coberturas sensacionalistas, fake news circulando na internet, pedidos de expulsão do grupo, depoimentos à polícia, exposição pública… Duas cartas publicadas pelo cantor, reconhecendo seu erro e pedindo desculpas, não foram suficientes para amenizar a onda de ódio, que tomou proporções mundiais.

A situação só se acalmou quando os resultados das investigações comprovaram que os vídeos exibidos e atribuídos a ele eram falsos e quando as autoridades policiais coreanas noticiaram que o caso estava arquivado. Em resposta ao cenário, houve manifestações de apoio ao BTS ao redor do mundo, o que levou ao crescimento do sucesso dos rapazes em plataformas como Spotify, YouTube, Apple Music e Bilboard, mesmo eles estando fora dos palcos por conta do serviço militar. Entre as canções, muitas do rapper Suga, conhecido também como Agust D, chegaram aos primeiros lugares.

Ataques de ódio

A advogada e apresentadora Gabriela Priori é uma personalidade brasileira que também já se viu diante de ataques que, por conta de uma brincadeira que fez na internet, geraram consequências para seus negócios, sua segurança e, sobretudo, sua saúde.

“Eu fiz uma piada que todo mundo tinha feito. Saiu a lista de detratores do governo. Todo mundo fez a mesma piada: ‘Nossa, eu falo tão mal do governo e não estou na lista”, contou ela em uma entrevista, após o ocorrido.

Na época, o que mais atingiu a apresentadora não foram as palavras de hatters, seu nome nos Trending Topics do X (ex-Twitter) ou os ataques da militância política que a perseguiu, mas o fato de fazerem circular na rede uma charge que envolvia seu pai, falecido há 29 anos, com o objetivo de descredenciar os valores sociais defendidos pela apresentadora. Isso a fez adoecer. “Se a gente quer um mundo de mais respeito, de mais empatia, de mais solidariedade, de mais compaixão, de mais afeto de maneira geral, a gente não pode operar sob a lógica do ódio”, pontuou durante a entrevista.

Superada a crise e com a saúde recuperada, Gabriela Priori continua se posicionando através da internet e também ganhou destaque como apresentadora, sobretudo, por sua capacidade de abordar temas complexos de forma simples e assertiva, porém, seu processo de superação foi desafiador.

Consequência

Em suas falas sobre o cancelamento digital, Gabriela Priori destacou a crueldade dos hatters, que sentem satisfação em causar dor. “Tem muita gente que é cruel e não é sem querer. É de propósito. O que ela quer é te causar dor. Então eu sempre me contive pra não dizer que eu sofria. Mas eu adoeci.” 

Os impactos disso na saúde mental e psicológica de uma pessoa podem ser realmente devastadores. “Todo movimento de cancelamento digital impacta profundamente as pessoas, principalmente as vítimas, mas também outras pessoas envolvidas. As vítimas podem apresentar crise de ansiedade e sintomas depressivos. Há uma diminuição da autoestima, devido à enxurrada de críticas e julgamentos e, em casos mais graves, isso pode chegar a ser desencadeador de pensamentos suicidas”, explica a psicóloga Juliana Capel, especialista em Psicologia Positiva (PUC-RS), analista de forças pessoais, Character Strengths Interventor (Instituto Flow) e criadora de conteúdos sobre psicologia e doramas/K-Pop, desde 2019.

Ainda de acordo com a psicóloga, os efeitos podem, ainda, levar ao isolamento social e ao forte sentimento de humilhação, principalmente, porque no ambiente digital o cancelamento e o cyberbullying tomam proporções que não correspondem à realidade, de forma rápida e intensa, muitas vezes sob o anonimato. Tal nível de estresse faz com que a pessoa adoeça psicologicamente.

“Em relação ao episódio do Suga, onde a reação foi muito desproporcional ao erro, isso pode aumentar a culpa que a pessoa esteja sentindo. Também há a questão de levar a um profundo sentimento de vergonha e até mesmo a algo mais prejudicial, que é colocar em questionamento o julgamento da pessoa em relação aos seus próprios atos. Isso pode trazer fragilidade para o senso do eu e como essa pessoa se posiciona em relação ao mundo, com consequências mais sérias da avaliação que ela faz dela mesma”, alerta.

A recuperação de uma crise de cancelamento digital  e cyberbullying deve despertar para as vítimas a clareza sobre os significados dos ciclos de culpa e autorresponsabilidade. A culpa tende a suscitar sentimentos negativos e punitivos; enquanto que a autorresponsabilidade é a chance de entender qual foi a própria contribuição no acontecimento e seguir em frente.

Para fazer essa transição, é importante contar com o apoio de amigos, família e profissionais do processo terapêutico. Esse aparato ajuda a vítima a se validar, absorver os aprendizados e desenvolver uma visão mais clara sobre a importância de ser autêntica e estar conectada com aquilo em que ela acredita, lidando melhor com as críticas, desenvolvendo resiliência e autocompaixão.

De acordo com a psicóloga, uma das coisas mais importantes é que tal apoio fortalece os vínculos da pessoa com quem esteve ao seu lado, incentivando, oferecendo suporte emocional e mostrando que o acontecimento não determina quem ela é e nem como será o futuro dela.

Nas escolas 

Apesar de ocorrer no ambiente digital, o cyberbullying tem desdobramentos para a vida real. Como os casos ocorrem com muita frequência, muitas escolas têm se preocupado com a questão e introduzido essa discussão no dia a dia dos estudantes, com o objetivo de criar ferramentas para que saibam como reagir a isso e, principalmente, não propagarem este comportamento.

“Uma forma importante de abordar o cyberbullying, além de estudar casos relativos a isso, é problematizar junto aos alunos, para que  possam, conjuntamente com uma prática pedagógica de resolução de problemas, dizer como eles contornariam uma situação de bullying, caso fossem vítimas. É importante, no contexto dessas práticas, enfatizar que ao serem vítimas de situações como essas, é fundamental que eles possam sair um pouco desse lugar que faz tanto mal. Se estão sendo expostos de uma maneira vexatória e violenta, precisam sair desses espaços e procurar apoio no mundo real, entendendo que amigos, família e escola são um bom ponto de apoio”, ressalta Bruno Ferreira, coordenador pedagógico do Instituto Palavra Aberta.

As questões de cyberbullying e cancelamento digital, afirma o educador, podem ser trazidas para as salas de aulas em diferentes abordagens. O tema abre possibilidades de discussão a partir da educação para os direitos humanos, educação antirracista ou educação para equidade de gênero, por exemplo.

Para facilitar os trabalhos, é recomendado aos professores partir de algum caso de repercussão e pedir para que estudantes o analisem, expressando suas opiniões, seja sobre postagens ou repercussão dessas, envolvendo as notícias. A ideia é, com a mediação de docentes, sempre analisar o que está por trás das postagens e da onda de ódio disseminada nesses espaços, incentivando o olhar empático, o desenvolvimento da criticidade e a identificação de  estratégias para mitigar a dor de quem sofre esse tipo de exposição.