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Jarê, religião exclusiva da Chapada, sobrevive pelas mãos de guardiões


 

Há pouco mais de um mês, um dos maiores curandeiros morreu e comunidade religiosa, em meio ao luto, olha para frente

  • Fernanda Santana

Publicado em 22/05/2021 às 07:00:00
Atualizado em 22/04/2023 às 07:01:05
. Crédito: Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê

Sob a terra que cobriu o corpo de um homem, estavam também mistérios. Com Gildasio de Oliveira, o Pai Gil de Ogum, morto aos 58 anos, também foram enterrados, para sempre, segredos do jarê, religião que só existe na Chapada Diamantina. Ninguém dizia, mas pairava no ar não só a tristeza visível nos olhos avermelhados. Sem Pai Gil, aqui ficariam 300 filhos de santo órfãos, o destino incerto de um dos mais tradicionais terreiros da região e uma responsabilidade que unia os presentes no velório - o jarê.   Naquela noite de 17 de março, Lençóis parecia ainda mais silenciosa. Os atabaques estavam quietos. Os adeptos do jarê, aflitos. A despedida de Pai Gil, também conhecido por Daso, falecido de madrugada, despertou uma comoção instantânea na cidade e, onde houvesse iniciados na religião, o sentimento era o mesmo. A causa do óbito não foi divulgada, mas a suspeita é de que ele tenha sido vítima da covid-19. Pai Pepê, 20, o mais novo pai de santo local, pressentiu, após o enterro, um período de luta. “Me vejo como guardião”, diz. De fato, é.   Hoje, na zona urbana de Lençóis, maior berço da religião, resta apenas um curandeiro, justamente ele, Pai Pepê. Nos distritos das zonas rurais da cidade, são seis. “No jarê me fiz, me criei, e nele eu morrerei”, anuncia Pepê. O pai de santo foi feito na religião ainda pequeno, num terreiro na vizinha Utinga. Aos três dias de vida, “apanhou” pela primeira vez do santo. Seus olhos de recém-nascido não tinham expressão e os médicos diziam que “aquilo não era coisa para a medicina”. Sobreviveu sem viço infantil, apático, dormindo pelos cantos. Pepê e a família no terreiro que fica nos fundos da casa (Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê) A avó, que sempre sonhava com o verde do orixá Oxóssi, desconfiava que aquilo era “coisa de encantado". Quando Pepê completou 7 anos, pegou o neto pelo braço e foram a um terreiro. Lá, ele incorporou o Preto Velho, o que confirmava a necessidade de iniciação. Aos 12 anos, ele virou pai de santo. Dois anos depois, abriu o próprio terreiro, o Castelo de Ogum. Os mais velhos ajoelhavam para beijar a mão da criança escolhida.    Diferentemente do Candomblé, no jarê, religião que mescla elementos afro-brasileiros e indígenas nos cultos espirituais, os cargos são menos rígidos. A linguagem, idem. Um pai ou mãe de santo constantemente são referidos como um curador e vice-versa. A diferença é que um curador não aprende o dom da cura, fundamental desde o princípio do Jarê. Ele é designado e incorporado pelos encantados, como também são chamados orixás e caboclos, a fazê-lo. Foram essas forças que encontraram Pepê ainda neném.  Do garimpo a uma religião que é símbolo da terra   Às quartas-feiras, Pepê põe-se diante do Peji, espécie de altar, e pede pelos filhos de santo. Reunidos em grupos pequenos, ele e outros religiosos às vezes recebem a visita de encantados. Em momentos como esse, Pepê veste roupas coloridas - as favoritas são o verde e vermelho.    Os curandeiros prestam, hoje, apenas serviços espirituais urgentes e os religiosos batem jarê em grupos pequenos. A pandemia assusta mesmo quem conhece os fundamentos espirituais da cura. No fundo do Palácio de Ogum, os ornamentos e a rotina religiosa sintetizam o porquê de o jarê não ser classificado apenas como Candomblé.

Referência nos estudos sobre o jarê, o antropólogo Ronaldo Senna, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), o define como um “candomblé de caboclo”, fusão de elementos do Candomblé e indígenas. Na verdade, o jarê é considerado uma vertente do Candomblé trazido pelos africanos escravizados ao Brasil e constituído ao nosso modo.“Costumamos dizer que todas as religiões de matrizes afro-brasileiras são aparentadas. Adeptos de diferentes religiões podem transitar por variantes com facilidade”, explica o antropólogo Gabriel Banaggia, que estudou a religião para o doutorado pelo Museu Nacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.A Umbanda, por exemplo, é uma vertente religiosa afro-brasileira. “E o próprio jarê tem semelhanças com ambos”, ressalta. Jarê, no entanto, só há um.    As religiões são transformadas em cenários locais, moldados pelo povo da terra, pela geografia. O jarê é lapidado sob a liderança de negras nagôs, livres ou não, que chegam a Lençóis, no início do século 19. Elas cultuavam os orixás, mas outras entidades apareciam e nos cultos foram ficando. Assim, nascia a religião, também marcada pelo lugar quase intocado que era Lençóis, com profunda relação com a natureza.  Pai Gil, no terreiro, semanas antes de falecer (Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê)  A influência católica também se fez presente e, até hoje, há iniciados no jarê devotos de santos. Era o caso do próprio Pai Gil, que se curvava para reverenciar o Senhor dos Passos e carregava, há 34 anos, o andor do santo na festa dedicada a ele em Lençóis, sem deixar de receber gente de toda espécie à sua porta em busca de curas para o corpo e para alma.   Ancião mais velho sofre de Alzheimer   É a descoberta de minas preciosas na Chapada que, ao atrair garimpeiros, aprofunda a relação da população local com o jarê. Num mundo em que a sorte leva às pedras preciosas, explica o antropólogo Gabriel Banaggia, os encantados são vistos por esses homens como caminhos “de mudar o destino”. Aqui, vale dizer que, quando falam “encantados”, os religiosos se referem a seres que deixaram o mundo material, sem registros sobre suas mortes, e se “encantaram” com uma nova potência de vida.    Essa também era uma época de profundo afastamento de serviços básicos. Os curadores, muitas vezes, eram os únicos capazes de manifestar a cura. Por isso, sempre gozaram de prestígio simbólico, e são os mais velhos as bússolas sobre os preceitos da religião - inclusive a reverência a quem foi escolhido para curar.    Há três anos, um desses anciões, o mais velho de Lençóis, já não se lembra como gostaria dessa história. Prevalece um vazio nas memórias de Cosme José de Souza, o Cosminho, aos 84 anos. Uma ironia da vida para uma religião que não se aprende em livros. Cosminho, diagnosticado com Alzheimer, paga promessa desde criança para Cosme e Damião, depois da irmã gêmea falecer.   Peji da casa de jarê de Cosminho, um dos anciões da religião (Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê)  Entre os dias 22 e 23 de setembro, a casa dele se enchia, antes da pandemia, de gente para comer caruru, ouvir os atabaques e ver encantados descerem. A filha, Cleinha, é uma das figuras centrais da manutenção da tradição. Foi iniciada há 10 anos, mas quando criança um encantado “desceu na sua cabeça”. E foi ele, Cleinha diz, quem curou sua irmã Neide, doente de um mal sem remédio. “O santo me deixava fraca, vivia tendo pesadelos”.   Ela é um dos 300 filhos de santo órfãos de Pai Gil. O terreiro está num período de luto de um ano. Findado esse hiato, não se sabe o que será. Os encantados decidirão o futuro.   O último levantamento da Associação Filhos de Ogum, de 2015, mapeou 40 terreiros em cinco cidades da Chapada - 14 deles em Lençóis e o restante em Andaraí, Morro do Chapéu, Itaetê e Utinga. “Não levantamos o fechamento, mas têm duas questões que mudaram a cabeça de muita gente: os jovens não querem dar continuidade e o movimento das igrejas evangélicas aqui”, conta o presidente da Associação, Sandoval Amorim, filho de um dos maiores líderes do jarê, o falecido Pedro de Laura.

[[galeria]]  Fortalecimento do cristianismo mudou a cabeça de ex-adeptos do jarê  As datas de cerimônias ou noites de “bater jarê”, como dizem os religiosos - alternam. Há sempre dança e atabaques que despertam as entidades. Numa só noite, as celebrações duram até dez horas, podem ser repetidas dois, ou três dias, e se fazem ouvir pela cidade. No passado, os mais antigos lembram de nove dias de festividade, com dezenas de encantados descendo no corpo dos religiosos. As festas para Cosme e Damião, em setembro, e Santa Bárbara, em dezembro, são as maiores.    Os terreiros ou casas de jarê, espaços onde as cerimônias religiosas acontecem apenas uma vez por ano em reverência a Cosme e Damião, costumam ser cercados por panos coloridos e abrigar pejis com imagens de santos católicos, caboclos e orixás iluminadas parcamente por velas. Foto: Paula Zanardi/Cantigas do Jarê Nascido em Pau de Colher, zona rural de Lençóis, Edivaldo dos Santos, o Dil, 49, recorda uma época em que cada rua tinha “muitas casas batendo jarê”. Dil está à frente do Terreiro da Mata de Senhor Ogum, e terminava as obrigações para se firmar curador, sob a tutela de Pai Gil, quando a morte levou o líder religioso. O terreiro dele foi aberto há 24 anos, na cidade, mas, há dez anos, migrou para a zona rural.   Há certo saudosismo, mas as pessoas ouvidas concordam ao dizer que o desinteresse dos mais jovens em responsabilidades - guiar um terreiro e ficar entregue à vontade do desconhecido exigem determinação - e o avanço das religiões protestantes impactaram o jarê. “Mudei porque tinha muito crente na rua. Achava que ia atrapalhar”, conta Dil.   Nas cinco cidades onde se mapeou o jarê, menos de 1% da população disse professar religiões afro-brasileiras. De 2000 a 2010, o número de evangélicos saltou de 23,3 mil para 33,2 mil, mostra o IBGE. Essa prevalência começa nos últimos 15 anos, dizem. moradores. “As pessoas já não querem tanta responsabilidade, também chegou muito crente”, diz Maria Aurea, responsável, com Sandoval, pelo Palácio de Ogum.  Cantigas antigas do jarê são resgatadas  Entre março e abril deste ano, pesquisadores visitaram noves lideranças religiosas da cidade. Eles foram convidados, também, a cantar velhas cantigas do jarê. Talvez fossem uns dos poucos com esse repertório. A ideia daqueles encontros tinha sido de Sandoval Amorim. “Virou um acervo muito grande, uma forma de preservar essas cantigas, as vozes, as variações”, acredita Paula Zanardi, antropóloga que coordenou o projeto que resultou no site cantigadojarê.com.br, contemplado pela Lei Aldir Blanc.

     Não é porque o jarê faz parte da história da Chapada Diamantina que tenha passado, ou passe, intacto ao racismo e à intolerância religiosa. Ao contrário, “é um processo longo de afirmação de si”, narra Paula. As religiões afro-brasileiras, por exemplo, agrupavam, estatisticamente, 146 pessoas até 2010, na região, número que não reflete nem a quantidade de filhos de santo de Pai Gil.    Durante as pesquisas para o doutorado pela Universidade Federal da Bahia, o escritor e geógrafo Itamar Vieira Junior participou de cerimônias do jarê que seriam abordadas no livro Torto Arado. A narrativa, ambientada numa área quilombola fictícia da Chapada Diamantina e que se transformou num fenômeno literário, põe a religião num ponto central. E a ela recorrem os moradores em momentos de desespero. Zeca Chapéu Grande, pai das personagens principais, é o grande líder, de modo que Belonísia e Bibiana crescem “entre loucos e preces, entre gritos e xaropes, entre velas e tambores”.   Depois da morte de Zeca, no entanto, a tradição do jarê em Água Negra enfraquece. O evangelismo chega e converte a cabeça de ex-iniciados. O último capítulo do livro é narrado, inclusive, por uma encantada chamada Santana Rita Pescadeira, que não tem aparecido nas cerimônias de Jarê.

A força da ancestralidade é o que mantém o presente e o passado conectados. Silenciados os atabaques em Água Negra, os encantados tomam distância, mas ainda estão ali, porque forças não morrem.    Era noite de bater jarê para Cosme e Damião, há dois anos, quando o ancião Cosminho, com a mente embaçada pelo Alzheimer, mostrou que assim é. Todos cantavam para Ogum e estranharam ao vê-lo se levantar da cadeira. Os filhos admiraram ainda mais, pois o pai parecia fraco segundos antes. Mas ali estava ele, emprestando seu corpo para um encantado e rodopiando como se nenhum mal turvasse seu horizonte.