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Portal da covid-19: entenda como Feira de Santana se tornou um distribuidor do vírus no estado


 

Por ser entroncamento rodoviário e pelo comércio forte, cidade passou a ser um dos focos de preocupação

  • Thais Borges

Publicado em 18/07/2020 às 07:00:00
Atualizado em 21/04/2023 às 09:40:05
. Crédito: Prefeitura de Feira de Santana / Divulgação

É como se remontasse à própria colonização na Bahia: primeiro, vieram os grandes centros, no litoral. Quase dois séculos depois, o interior - o sertão - começou a ser ocupado. Naqueles idos do século 19, é possível que Feira de Santana já desse indícios de que seria um dos principais polos de distribuição de mercadorias e de fluxo de pessoas do estado. 

Só que, agora, diante da pandemia da covid-19 em 2020, é justamente essa vocação da cidade que tem preocupado não apenas quem mora no município. Com uma rapidez bem própria daquela que é o maior entroncamento rodoviário do Norte e Nordeste, Feira se tornou um “polo irradiador” do coronavírus na Bahia, na avaliação do comitê científico do Consórcio Nordeste. “Esse era o caso das capitais e depois passou a ser o das cidades importantes (de cada estado). Entre 14 e 27 de junho, o número de casos em Feira de Santana triplicou. Foram dois mil novos casos em 14 dias. Isso mostra uma grande expansão da doença”, explica o cientista Sergio Rezende, um dos coordenadores do comitê científico. O cenário nas cidades vizinhas e nas que são, de alguma forma, abastecidas por Feira ajuda a entender esse alcance: de 54 municípios baianos nessas condições, apenas dois não tiveram aumento no número de casos ao longo do último mês. 

Do dia 14 de junho até a última segunda-feira (13), enquanto Feira teve um aumento de 407% entre os infectados, 26 cidades registraram crescimentos percentuais ainda maiores. Algumas, como Capela do Alto Alegre e Pintadas, aumentaram mais do que 2.000%. 

A pedido do CORREIO, pesquisadores à frente do Portal Geocovid-19 identificaram as 10 cidades que mais sofrem com os impactos do coronavírus em Feira. "É o top 10 de influência de Feira de Santana", diz o geólogo Washington Rocha, professor titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Terra e do Ambiente.

De acordo com ele, o principal fator para essa influência seria a conexão rodoviária."A gente sabe que o fluxo de cargas e de pessoas, mas principalmente o de cargas, vem sendo mantido. Teve alguma redução devido à queda de demanda, mas vem sendo mantido. E mesmo com fluxos de ônibus (interestaduais) interrompidos, tem transporte alternativo que ainda tem funcionado", explica Rocha.  Eixos rodoviários O primeiro caso de covid-19 na Bahia foi justamente em Feira. Na época, o coronavírus chegou aqui da mesma forma que aportou na maioria dos grandes centros ao redor do mundo - pelos aeroportos. Recém-chegada de uma viagem à Itália, uma moradora de Feira de Santana foi confirmada como a primeira infectada ainda no começo de março. 

Hoje, pouco mais de quatro meses e mais de cinco mil casos de coronavírus depois, a cidade tem o segundo maior número de infectados na Bahia e viu estradas e rodovias tomarem o lugar dos aeroportos na disseminação da covid-19. Desde quarta-feira (15), Feira adotou o toque de recolher, que restringe a circulação e o funcionamento do comércio entre as 18h e 5h do dia seguinte. Nesta semana, quando a ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) exclusivos para covid-19 chegou a 100% na terça-feira (14), até a secretária de Saúde do município, Denise Mascarenhas, testou positivo.

Na quarta-feira (15), enquanto inaugurava o Hospital Geral Clériston Andrade 2, o governador Rui Costa afirmou que o diretor-geral da unidade, José Pintangueira, não participaria da solenidade justamente por também ter sido infectado. No novo hospital, foram implantados 40 novos leitos de UTI. “Feira de Santana é uma cidade que distribui muitos veículos e muita gente dentro dos veículos. É um hub, um distribuidor. Isso faz com que tenha um papel fundamental também na distribuição de agentes patógenos. É preocupante”, diz a epidemiologista Maria da Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e uma das coordenadoras da Rede Covida, formada por pesquisadores da instituição e da Fiocruz. Era esperado que isso acontecesse. Desde os primeiros casos, de acordo com o professor Washington Rocha, do Portal Geocovid-19, foi possível perceber um padrão: começava do litoral e seguia, pelos eixos rodoviários, até o interior. 

"Foi o primeiro insight rodoviário", diz o professor. Para chegar às cidades mais influenciadas por Feira de Santana, os pesquisadores fizeram um cálculo usando índices epidemiológicos e um estudo que estima o fluxo de pessoas entre os municípios. 

O chamado top 10 acabou ficando assim: Salvador, Santa Bárbara, Tanquinho, Jequié, Santo Estevão, Itaberaba, Milagres, Riachão do Jacuípe, Santanápolis e São Gonçalo dos Campos.  A pedido do CORREIO, pesquisadores do Portal Geocovid-19, coordenado pelo professor Washington Rocha, mapearam os três eixos rodoviários que recebem influência de Feira de Santana. O gráfico foi feito pelo professor  José Garcia Vivas, da Ufba (Imagem: Reprodução/Portal Geocovid-19) A partir dessas dez cidades, foi possível identificar três grandes eixos rodoviários que envolvem Feira de Santana. O primeiro é o eixo Norte-Noroeste, que compreende o oeste da BR-324 e o Norte da BR-116. Assim, foi possível notar a influência em Santa Bárbara, Santanópolis, Irará, Serrinha, Tanquinho e Riachão do Jacuípe. 

O segundo eixo, batizado de Leste-Sudeste, passa pelo leste da BR-324 e pelo sul da BR-101. Nesses sentidos, surgem os municípios de São Gonçalo dos Campos, Coração de Maria, Conceição do Jacuípe, Amélia Rodrigues e Salvador. 

"A troca de Feira com Salvador é grande, pela própria força da ligação, nos dois sentidos", explica o professor Washington, referindo-se à presença da capital entre os municípios que mais sofrem influência de Feira de Santana. 

E, por fim, o terceiro eixo rodoviário foi chamado de Sul-Sudoeste. Passando pela BR-16 Sul e pela BR-242, esse eixo indica influência nas cidades de Santo Estevão, Milagres, Itaberaba e Jequié. "Você pode ter o chamado efeito bumerangue, porque esses fluxos se dão nos dois sentidos. Então, à medida que esses municípios ao longo do eixo vão sendo contaminados e aumentando o número de contaminados, existe uma recontaminação e um fluxo de volta. É provável que até Salvador receba esse ciclo de retorno. Ou seja, estamos falando de uma segunda onda a partir das cidades do interior", alerta Rocha. Abre e fecha Nesse contexto, o comércio de Feira surge como um problema. Não é novidade a força que a atividade comercial tem lá - e não só para o município. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Feira de Santana é a segunda cidade mais apontada por outras cidades como motivo de deslocamento para compras de móveis e eletroeletrônicos. Só perde para São Paulo (SP). 

Além disso, é a terceira cidade para qual as pessoas mais viajam para comprar roupas e calçados - fica atrás apenas de Goiânia (GO) e Caruaru (PE). Só na Bahia, 51 municípios disseram ser abastecidos por Feira de Santana com esses itens. Foi a partir da soma dos que compram de lá com os que fazem fronteiras que foi possível chegar aos 54 que também têm alguma influência direta do comércio da cidade. 

E, de fato, apenas dois não tiveram aumento de casos de covid-19 nos últimos dias. Essa é uma das formas de entender os motivos pelos quais o comércio é uma das atividades que mais contribuem para a expansão da doença, como explica o cientista Sergio Rezende, do comitê científico do Consórcio Nordeste. 

“Essa é a atividade que mais contribui para o espalhamento, por isso a nossa recomendação é de só deixar o comércio essencial de alimentos e medicamentos. O comércio de outros produtos, infelizmente, é supérfluo nesse sentido”, pondera Rezende. 

O problema é que, desde o começo das medidas de restrições, as atividades comerciais em Feira foram marcadas por um “vai e volta”. Tudo foi fechado em março, até que, ainda em abril, a prefeitura autorizou a reabertura de lojas com até 200m², em horário de funcionamento reduzido. 

O decreto ia além das atividades essenciais: estavam incluídas lojas de móveis, refrigeração, eletrodomésticos, óticas, armarinhos, livrarias, papelarias, eletroeletrônicos, vestuário, calçados, cosméticos, automóveis, joalherias, embalagens, artesanatos, floriculturas e utilidades domésticas. 

Em maio, o município voltou atrás. Até que, no dia 15 de junho, um novo decreto flexibilizou as medidas e permitiu o funcionamento até mesmo de shopping centers. Desde o dia 7 de julho, porém, tudo voltou a ser fechado. "Se você tem Feira abrindo o comércio e outras cidades vizinhas tendo acesso a Feira, o que pode acontecer é que pessoas que moram nessas cidades menores levem e aumentem a disseminação do vírus nesses locais, onde não há leitos disponíveis em quantidade", diz a biomédica Isis Vergne, professora de Virologia do curso de Biomedicina da UniFTC. Sem leitos nas pequenas cidades, é possível que esses moradores infectados sejam deslocados para centros maiores - como a própria Feira ou Salvador. Só que a Feira, por sua vez, é uma das 10 cidades que mais enviam pacientes para ser tratados em Salvador. 

"Quanto mais pessoas com sintomas, menos leitos estarão disponíveis. Para a flexibilização do comércio e dos shoppings, isso é importante ser avaliado. Mas não adianta a vigilância e os órgãos governamentais criarem critérios para o retorno se a população não estiver firme nessa parceria de cumprir com o que cabe a ela", destaca Isis. 

Mas a influência de Feira pode ir muito além dessas 54 cidades. Talvez seja até mesmo impossível calcular todos os municípios que, de alguma forma, poderiam ser impactados. Para a epidemiologista Maria da Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), isso está relacionado ao fato de Feira de Santana ser um entroncamento rodoviário. 

“O vírus viaja com as pessoas. Então, uma pessoa que contraiu em Feira pode transmitir em municípios próximos, mas também pode parar em outro estado. Pode ser Tanquinho (a cidade atingida)? Pode, mas não é necessariamente Tanquinho. Pode ser qualquer cidade em que uma pessoa que passou ou dormiu em Feira, deixou sua mercadoria e teve contato com outras”, diz a professora, que é uma das coordenadoras da Rede Covida. Tanquinhi, por sua vez, é um dos municípios que faz fronteira com Feira de Santana. 

Pressão econômica Diante de todo esse intercâmbio entre as cidades, o cientista Sergio Rezende sugere a implantação de barreiras sanitárias nas estradas que saem de Feira de Santana, além do fechamento do comércio, medida que tem sido adotada nos últimos dias. 

"O comitê entende perfeitamente a pressão que sofrem os prefeitos. Os comerciantes precisam trabalhar, mas acontece que mais importante do que a economia é a vida das pessoas", alerta.  

A sugestão do comitê é de que qualquer cidade que se pretende flexibilizar medidas de distanciamento social calcule sua matriz de risco, que leva em conta a situação do sistema de saúde, as condições locais e a situação geográfica. Se a soma de todos os pontos for menor do que 80 durante 14 dias, é possível afrouxar. 

Mas, de fato, a pandemia afetou o comércio em Feira. Segundo o economista Cleiton Silva, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e tutor do Programa de Educação Tutorial (PET) de Economia, já é possível notar que a atividade econômica na cidade está debilitada. 

Só em maio, mais de quatro mil postos de trabalho formal foram perdidos."O estoque de trabalhadores formais de Feira reduziu em quase 4% neste ano, e espero que a recuperação do nível de emprego no município seja lenta, mesmo após o fim da grave crise sanitária em curso. A recuperação do emprego no período pré-pandemia, diga-se de passagem, já era muito lenta. Vale lembrar: o mercado de trabalho em Feira sofreu muito na recessão de 2014-2016", pontua.Procurada pelo CORREIO, a Secretaria de Saúde do município não emitiu posicionamento até a publicação da reportagem. O prefeito Colbert Martins (MDB) não respondeu ao pedido de entrevista.

Fluxo rodoviário e comercial remonta às origens de Feira de Santana, explica historiador Há quem diga que o desenvolvimento comercial e rodoviário de Feira de Santana se deu apenas por uma localização privilegiada. No entanto, segundo o historiador Clóvis Ramaiana Oliveira, pesquisador e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), não foi apenas isso que aconteceu nas origens do município, entre os séculos 18 e 19. "Eu diria que foi uma combinação de uma localização privilegiada e de escolhas de algumas figuras que fez de Feira o que ela é", pondera Oliveira. Um exemplo é que a primeira experiência urbana é em São José das Itapororocas - hoje o distrito de Maria Quitéria. Depois é que Feira muda para o local onde é hoje. Ali, existiam comunidades quilombolas, remanescentes de indígenas e um pequeno campesinato. Eles trocavam mercadorias entre si. 

"E existe uma segunda alavanca que é que, em algum momento, começa-se a mercar produtos de fora da região. Feira tem uma relativa proximidade de Cachoeira, então recebia produtos importados. Às vezes, eram produtos que nem tinha em algumas capitais, mas chegavam a Feira, ainda na transição de 1700 para 1800", conta. "Então, tinha grandes fazendas, mas também tinha muitos pequenos proprietários produtores de verduras e frutas. Tinha um corredorzinho que era um cinturão verde. Isso aqueceu significativamente a feira livre", conta o professor. 

A feira de gado era tão forte que, em 1856, o então imperador Dom Pedro II veio à Bahia justamente para visitá-la, em Feira de Santana. Já nas décadas finais de 1800, grandes armazéns - as chamadas casas de secos e molhados - de famílias poderosas que residiam em Salvador começam a se instalar em Feira. 

Tudo isso permitiu que a cidade crescesse. Há, ainda, alguns episódios marcantes, segundo o historiador. Um deles é a construção da rodovia Rio-Bahia - a BR-116 - entre 1939 e 1949. A movimentação ganha ainda mais força com a BR-101, mas, havia também estradas menores que estavam sendo instaladas para ligar propriedades particulares. 

"Várias estradas foram abertas em um sistema que hoje a gente chamaria de Parceria Público-Privada. Eu diria que essa experiência histórica, em certo sentido, permanece, porque, até os dias de hoje, muita gente em Feira precisa do comércio para comer", analisa Oliveira.