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Paraíso abandonado: coronavírus chega a Nova Caraíva e população pede socorro


 

Com dois infectados, cidade não tem estrutura sanitária para tratamento da doença

  • Marcela Vilar

Publicado em 24/06/2020 às 06:00:00
Atualizado em 21/04/2023 às 07:46:07
. Crédito: Igor Neves

Se para chegar ao “paraíso perdido” que é Caraíva já é complicado, imagine deslocar uma equipe médica e garantir uma boa infraestrutura de saúde para os moradores. Saindo de Porto Seguro, são 2 horas de estrada - uma parte com asfalto, outra parte de terra - até o distrito de Nova Caraíva, que tem cerca de 5 mil habitantes. De lá, ainda é preciso pegar uma canoa, atravessar o rio e chegar à vila. Mesmo isolada, o coronavírus conseguiu alcançar a região - já são dois casos da doença em Nova Caraíva desde a última quinta-feira (18).

Preocupados com a situação, 31 empresários e moradores lançaram, nesta segunda (22), uma campanha nas redes sociais pedindo apoio dos agentes públicos e da Prefeitura de Porto Seguro para implementar novas medidas de combate à covid-19. Nenhum dos dois distritos tem uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou hospital, existe somente uma Unidade Básica de Saúde (UBS), com enfermeiros e técnicos de enfermagem - sem testes rápidos ainda. Também não há médico permanente, apenas um clínico geral que se reveza entre as duas localidades, duas vezes por semana em cada uma. 

Wander Edson Moreira, 39, é um dos 58 canoeiros nativos que faz a travessia pelo Rio Caraíva, seja de moradores - a taxa de transporte custa R$ 3 - seja de turistas - o custo é de R$ 5 - ou até mesmo pacientes - para eles, é de graça - que precisem de um atendimento médico mais específico. “O canoeiro é a pessoa em Caraíva que mais está se expondo, porque é a gente que tem esse primeiro o contato”, relata Wander, que também é presidente da Associação de Canoeiros de Caraíva há 8 anos. “A dificuldade é muita para se chegar em Porto Seguro e só temos médico dois dias, que não atende muita gente. Então a comunidade está toda dentro de casa”, conta. Desde o início da pandemia, só 9 dos 29 barcos estão fazendo o transporte, e os canoeiros estão trabalhando por escala, só para atender os moradores e pessoas que trabalham do outro lado do rio. 

A técnica de enfermagem Elizete Magno, que trabalha na UBS de Caraíva, conta que a base atende, em média, 15 a 20 pessoas por dia, mas o movimento reduziu com a pandemia. “As pessoas pensam duas vezes antes de sair de casa”, diz. Por não ser uma UPA, o papel da equipe de profissionais de saúde é orientar a população sobre os protocolos sanitários e encaminhar quem precisa a um hospital. “É um trabalho de prevenção. Orientamos usar a máscara, e, se precisar ter acesso à cidade, levar álcool em gel, luvas, manter a distância, não entrar em casa com a roupa que andou”, esclarece Elizete. Ela explica ainda que, por ser um distrito pequeno, não há condições de ter um hospital. 

Para os casos mais sérios, os pacientes de Caraíva devem então atravessar o rio - na maca, dentro da canoa - para que uma ambulância os levem a Porto Seguro, aguentando os solavancos da estrada de terra até lá. Mas até a estrutura de Porto Seguro, que é a sexta cidade mais procurada por turistas no país e tem uma população estimada de 148.686 habitantes segundo o IBGE, não é grande coisa: só são 10 leitos de UTI e 34 leitos clínicos para tratamento de pacientes com Covid-19. De acordo com o último boletim epidemiológico do município, só existem mais dois leitos disponíveis nas Unidades de Tratamento Intensivo e 27 leitos clínicos. Ao todo, são 401 casos confirmados da doença, 5 óbitos e 153 recuperados. 

O secretário de saúde de Porto Seguro, Kerry Ruas, clarifica que os dois moradores infectados pelo novo coronavírus em Nova Caraíva estão com sintomas leves, e, por isso, não precisaram se internar e estão fazendo o isolamento em casa. Ele ainda afirma que cerca de 90 a 95% dos casos no município também não precisam de internamento. “A gente não tem como fazer teste em todo mundo”, justifica. Por conta disso, o secretário explica que faz o monitoramento dos casos suspeitos e segue os protocolos de vigilância do Ministério da Saúde. O chefe da pasta ainda anunciou que serão disponibilizados mais 20 leitos de UTI - 10 em Porto Seguro e 10 em Eunápolis - que serão alugados em hospitais particulares pelo Governo do Estado. 

Infraestrutura  

Os problemas de infraestrutura não são de hoje. A energia elétrica só apareceu em Caraíva em 2007, após muito diálogo dos moradores com os órgãos públicos. As ruas ainda são todas de areia. Já a água encanada só chegou no ano passado. Antes, era só por poço artesiano. O único posto policial, por sua vez, tem uma equipe itinerante. “Eles não têm uma rotina. De vez em quando, quando acontece um fato, eles aparecem”, diz o empresário Agrício Lemos, 49, que é de Recife mas mora na vila de Caraíva há 7 anos. “A vila é muito frágil, temos indígenas e trabalhadores que são mais frágeis ainda. A gente vem cobrando da prefeitura, mas existe um abandono das políticas públicas, eles fazem o mínimo possível”, opina o empresário, que é dono de uma padaria e uma pousada no local. 

Uma maneira encontrada para driblar o descaso dos órgãos públicos foi criar conselhos e associações para levar as demandas da comunidade às autoridades. Um deles é o Conselho Comunitário Ambiental de Caraíva, que é composto por 14 membros. “A gente solicita, mas muitas demandas não são nem respondidas. Então a gente toma as rédeas”, declara o advogado Martim Arantes, 32, que é um dos conselheiros. Há cerca de 5 anos, eles tiveram a ideia de criar o ecoticket, que é uma contribuição voluntária de R$10 para os turistas e visitantes de Caraíva. 

No último ano, o Conselho conseguiu coletar cerca de R$120 mil, que foram usados para manutenção da vila. Um dos grandes problemas, explica Martim, é a coleta de lixo. “O escoamento do lixo é muito precário. Em época de alta estação, quando a população é 7, 8 vezes maior, a prefeitura até aumenta a estrutura, mas não dá conta”, afirma o conselheiro. Por conta disso, o grupo de voluntários do Conselho arrecada, junto com moradores e empresários, cerca de R$40 mil por ano para fazer o recolhimento. “Somos nós que contratamos caminhão, pagamos os funcionários das carroças, mais burros para as carroças…Isso deveria vir da Prefeitura, mas é a gente que faz todos os anos”, explica. Até a construção de dois banheiros públicos veio a partir da renda do Conselho. 

A arquiteta e ativista Rafaela Zincone, 25, que trabalha com comunidades indígenas da região e também faz parte do Conselho, revela que, por conta do turismo, a estrutura de Caraíva já não consegue mais dar conta. “A vila cresceu, as pousadas mudaram, a demanda mudou. Mas a saúde sempre foi precária, os postos com o mínimo. Na pandemia, tudo se destacou muito”, avalia. Rafaela também faz parte de um grupo de voluntários que criou uma vaquinha online para a distribuição de cestas básicas. Batizado de “Ninguém Passa Fome”, o coletivo já beneficiou 3.500 pessoas em situação de vulnerabilidade, distribuindo 12 toneladas de alimentos para 10 comunidades vizinhas. 

O CORREIO entrou em contato com a Prefeita de Porto Seguro mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. 

*Sob orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro