Assine

'O momento é o oposto de relaxar isolamento social', diz Miguel Nicolelis


 

Em entrevista ao CORREIO, coordenador do comitê científico do Consórcio Nordeste avalia impacto das medidas de restrição

  • Thais Borges

Publicado em 31/05/2020 às 07:08:00
Atualizado em 21/04/2023 às 05:58:05
. Crédito: Acervo Pessoal

No fim de março, ainda nas primeiras semanas de combate à pandemia do coronavírus, o cientista Miguel Nicolelis foi anunciado como um dos coordenadores do Comitê Científico do Consórcio Nordeste. A entidade, composta por representantes dos estados da região e pesquisadores de todo o Brasil e do exterior, foi criada para orientar e assessorar cientificamente as ações que seriam adotadas pela região. 

É justamente à frente do comitê que Nicolelis afirma que não é o momento de afrouxar medidas de distanciamento social.“Com essas curvas ascendentes de óbitos e com o uso do reservatório de leitos, o aumento das restrições do isolamento social é vital”, diz. E mais: ele defende um lockdown feito de forma sincronizada entre os estados do Nordeste e Sudeste. “A gente tem convicção de que, se você interrompe parcialmente artérias rodoviárias centrais, mesmo que você mantenha o tráfego de carga, mas se interrompe tráfego particular e de ônibus intermunicipais, já tem efeito de rede no Nordeste inteiro”, explica. 

Médico, neurocientista e professor da Universidade Duke, nos Estados Unidos, ele já foi considerado um dos 20 pesquisadores mais importantes de sua área pela revista estadunidense Scientific American. Em entrevista ao CORREIO, Nicolelis falou sobre o distanciamento social, critérios científicos e o atendimento às vítimas da covid-19. 

Confira os principais trechos da entrevista:

Passamos por uma semana em que três feriados foram antecipados na Bahia. É possível estimar quantas vidas foram salvas com essas medidas? 

Sobre essa semana, ainda não dá pra dizer porque ainda está acontecendo. Não tem como. Mas todos os modelos feitos para a Bahia e outros estados (do Nordeste) mostram que há uma queda no número de casos decorrente das medidas de isolamento social. Como a Bahia começou cedo com bloqueio de ônibus intermunicipais, redução de transportes na cidade de Salvador e outras medidas tomadas tanto pela prefeitura quanto pelo governo da Bahia, teve um achatamento da curva e isso foi muito benéfico.   Qual é a avaliação que o senhor faz dessas medidas de distanciamento social na Bahia de forma geral? 

A gente não fala em projeções de óbitos de maneira geral, mas, internamente a gente vê claramente o benefício dessas medidas, tanto é que continuamos a recomendá-las de forma ainda mais restrita. Quando o comitê resolveu criar uma matriz de risco com variáveis que apontam de maneira quantitativa que cidades estão cruzando limiares com restritivo e até mesmo lockdown, estamos seguindo esses critérios e todas as previsões até o momento bateram. 

Quando a gente diz que Mossoró (RN), Campina Grande (PB), João Pessoa (PB) e Natal (RN) tinham passado do limite, a gente viu que, em poucos dias, as previsões se confirmaram, principalmente no número de leitos. Essas cidades já passaram e, no último boletim (na ocasião, o boletim 7, divulgado em 21 de maio), a gente já tinha observado que Salvador tinha chegado à ocupação de 80% dos leitos de UTI.

Estamos esperando os dados mais recentes de hoje (a entrevista foi feita no dia 27) e de amanhã (quinta-feira, 28), para ter uma avaliação, porque a nossa expectativa é que esse valor tenha crescido. Outras capitais do Nordeste estão chegando nesses índices. A nossa grande preocupação, nesse momento, é com Acaraju (SE) e Maceió (AL), que estão chegando muito próximo desses valores. 

A nossa previsão era 90% de ocupação de UTIs em Salvador para hoje. Muda muito rápido. A gente usou critério de 80% de ocupação porque observou, que, na Europa, uma vez que cruzava 80%, a ocupação é muito rápida. Na Itália, na Espanha, foi assim. Nós usamos esse critério para dar alguns dias para os gestores poderem reagir. Essa previsão leva em conta o número de leitos disponíveis. 

No boletim divulgado pelo comitê no dia 21 de maio, foi recomendado que o lockdown fosse adotado quando os leitos hospitalares passassem de 80% de ocupação. Em Salvador, no início da semana, tínhamos 88% [ao fim da semana, a taxa tinha caído]. Cidades no Sul do estado tinham 80% de ocupação. Por que ainda continuamos sem lockdown? 

Tem que observar também as curvas de casos e óbitos sendo ascendentes. Salvador estava no limite. Ainda não tinha cruzado. Estamos esperando pra ver os números da semana. Mas nada impede de decretar. 

Esta semana, com feriados antecipados e apenas serviços essenciais funcionando, poderia ser enquadrada como um tipo de lockdown?

É uma medida anterior ao lockdown. Na realidade, é a tendência desse momento, do ponto de vista do comitê.O comitê tem se posicionado claramente que, com essas curvas ascendentes de óbitos e com o uso do reservatório de leitos, o aumento das restrições do isolamento social é vital. A gente vê isso do ponto de vista científico e não há a mínima dúvida.Foi o que aconteceu na Espanha, na Itália, na França e até na Alemanha, que se deu bem no começo, mas a primeira-ministra (Angela Merkel) percebeu que não ia segurar a onda e fechou tudo. E foi a forma como a China evitou o colapso. 

O Datafolha mostrou esta semana que o Nordeste é a região que mais apoia o lockdown (69%, de acordo com o instituto de pesquisa). Como o senhor vê essa resposta?

A pesquisa mostrou que o Nordeste está na frente. A opinião pública já entendeu. Cada vez que a gente fala sobre isso publicamente, as manifestações que eu recebo, seja nas minhas redes sociais ou colegas cientistas pelo Brasil inteiro, são de total apoio. Na realidade, você está abrindo espaço, do ponto de vista científico, que poderia ser apoiado do ponto de vista político, para uma ação coordenada das regiões Nordeste e Sudeste. Para que o lockdown fosse sincronizado entre Nordeste e Sudeste, porque se você tem BRs como a 116 e 101, o intercâmbio e a comunicação das regiões são extremamente grandes. Isso deveria ser papel de um comitê nacional, mas, na falta dele, como existem comitês nas cidades e estados e o do consórcio Nordeste, estamos em comunicação. E esse é um consenso. O Espírito Santo também se manifestou nesse sentido, que acha a ideia de um lockdown sincronizado muito importante, porque é um estado que está literalmente no meio do caminho (entre a Bahia e o Rio de Janeiro). 

Existe alguma discussão oficial nesse sentido?

Não foi discutido nenhum prazo. Foi uma discussão científica de uma análise dos dados, porque a gente viu o Sul da Bahia com uma situação crítica para ambas as regiões (Nordeste e Sudeste) e a gente viu uma variedade de análises que estão sendo feitas. 

A gente tem convicção de que, se você interrompe parcialmente artérias rodoviárias centrais, mesmo que você mantenha o tráfego de carga, mas se interrompe tráfego particular e de ônibus intermunicipais, já tem efeito de rede no Nordeste inteiro. É um efeito de rede que estamos querendo quantificar. Essa é parte das nossas análises. Qualquer coisa nesse momento é o oposto de relaxar. Se formos usar critérios científicos, clínicos, epidemiológicos, o momento é ainda de se defender (o distanciamento social) porque as curvas de óbitos e de casos são ascendentes. Por isso fizemos a proposta de ir de encontro ao vírus nas casas das pessoas, em municípios menores e periferias, que é o que já está sendo feito no Piauí. É casamento do aplicativo Monitora (do comitê científico) com a busca ativa de casos nas casas das pessoas. Isso está sendo fundamental no Piauí e está passando da hora de ser feito na Bahia.

Como isso poderia ser feito?

Quatro universidades da Bahia já aprovaram a criação de um programa de revalidação de diplomas de brasileiros formados no exterior. Isso tem que ser aprovado rapidamente ou a Bahia vai ficar sem médico. Isso é feito a nível estadual. [Esta semana, três universidades estaduais - Uneb, Uesc e Uesb - aprovaram o indicativo de um programa de revalidação. A Uefs deve submeter a proposta ao Conselho Superior.]

É importantíssimo que a gente vá de encontro ao vírus porque não há capacidade no mundo para criar leitos e hospitais na velocidade necessária se não quebrarmos a transmissão do vírus na raiz. Essa estratégia tem que ser central. Foi assim que a Coreia conseguiu. A Coreia do Sul conseguiu evitar uma tragédia mesmo estando ao lado da China, recebendo casos que nem uma tsunami.    O Brasil tem dez vezes menos teste por milhão de habitantes do que os Estados Unidos e 15 vezes menos que países europeus. Nem dá pra falar da Coreia. Já temos um app funcionando, que é o Monitora Covid, que já cruzou 71 mil pessoas que baixaram. Já temos quase 60 mil pessoas sendo monitoradas no Brasil todo, mas com concentração no Nordeste. Em estados como a Bahia e a Paraíba, as pessoas estão sendo atendidas pela telemedicina, o que está ajudando demais, mas a gente precisa de brigadas emergenciais em saúde na rua. São médicos de família nas cidades do interior, nas periferias. Existe um contingente de 15 mil médicos no Nordeste dedicados a atenção primária. No Brasil todo, isso é próximo de 45 mil. São médicos de família que podem fazer esse trabalho de caça ao vírus. A média nacional é 2,2 médicos por mil habitantes. No Nordeste, é de 1,5. Onde vai achar médico para o Nordeste? Tem que ir no reservatório que sobrou, que são os 15 mil brasileiros formados no exterior e que poderiam estar nos ajudando há semanas. A Universidade Federal do Maranhão já abriu edital de revalidação e teve cinco mil inscritos. Existe um tempo do vírus, um tempo para salvar vidas e o tempo da burocracia.

Como é possível avaliar quando fazer a retomada de atividades?

Ainda não dá para abrir nada. O Monitora Covid e as brigadas de saúde vão ajudar a dizer quais as áreas, regiões e setores que podem começar a abrir de maneira criteriosa usando ferramentas estatísticas e científicas. Não vai ser no achômetro: “Olha, tinha um foco nessa cidade, mas sumiu. O fogo está debelado, então pode começar a abrir”. Hoje, a distribuição dos casos em Salvador é quase homogênea. Mas vamos supor que sumiram os casos no Rio Vermelho. Aí você pode orientar o que fazer. 

Mas não é só a palavra lockdown e não é só dizer “tem que ficar em casa”. Tem que dar condições econômicas para as pessoas ficarem em casa, tem que fiscalizar o isolamento social. Por que os italianos, espanhóis e franceses conseguiram sair agora? Porque eles fizeram um negócio rígido, sem jeitinho brasileiro. Não adianta só botar no papel e achar que vai ser cumprido. No começo, em Milão (Itália), as pessoas se revoltaram, não queriam cumprir. Eu perdi várias pessoas que conheço lá porque, no começo, saiu o decreto e as pessoas não respeitavam. Então, o governo da Itália começou a montar e fiscalizar. Eles conseguiram depois de dois meses e meio em casa. Nós não estamos em casa há dois meses. Os decretos é que estão há dois meses. A taxa ideal seria acima de 60% de isolamento, mas tem lugares a menos de 40%. 

E tem outra coisa que é muito séria, que é que quando a gente não respeita isso. O pessoal vai para a praia, vai para a rua, tem festa. Eles não estão pensando que eles ou outros vão ficar doentes e que, daqui a 15 dias, os profissionais de saúde também vão ficar doentes e também vão começar a morrer. Cada vez que uma enfermeira ou técnico de enfermagem fica doente ou falece, o impacto é sentido em dezenas de pacientes, não é um só. Temos que assumir agora um outro tipo de cultura, porque a cultura do jeitinho brasileiro não funciona mais. Esse negócio de “vou na casa da fulana fazer uma festa e ninguém vai saber” não dá. A Bahia é um lugar maravilhoso, mas as pessoas têm que entender que, se não fizer o sacrifício agora, pode ter consequências. Os países europeus que o senhor citou fizeram lockdown até de dois meses. O Maranhão fez por dez dias. Tem um período ideal?

Você faz um período de 10, 15 dias e avalia. Mas tem que ter a fiscalização para ter certeza de que está sendo efetivo e aí reavalia porque tudo depende de quão sobrecarregados os sistemas de saúde estão, quantos casos estão inundando os sistemas de saúde. Mas, ao mesmo tempo, é isso: você precisa dar condições para as pessoas ficarem nesse regime. Até os Estados Unidos, que são a meca do neoliberalismo, distribuíram recursos federais para as pessoas ficarem em casa. Eu nunca vi isso em 33 anos morando nos Estados Unidos, mas até o governo americano se deu conta. 

E tem outra coisa: eles (os estadunidenses) começaram a relaxar cedo demais. Os cientistas americanos estão alertando que o feriado da segunda-feira (o Memorial Day, comemorado sempre na última segunda-feira de maio, este ano no dia 25), que é um dos mais importantes lá, vai ter consequências seríssimas daqui a 15 dias porque eles estão no pico. É um pico que está caindo lentamente, mas eles ainda têm 700 mortes por dia. Só tem um país que conseguiu passar isso agora e é o Brasil. Nós, hoje, somos os campeões de óbitos diários. Nós nunca tivemos um evento pontual na história do Brasil capaz de matar 1.000 pessoas por dia. Quais são as projeções para o nosso futuro? 

A projeção da Universidade de Washington bate com a nossa de que, se as medidas forem relaxadas e nada mais for feito, o Brasil pode ter 125 mil mortes até o início de agosto. Isso é um estudo americano independente de qualquer viés político. O estudo diz que o Nordeste pode chegar a 43 mil óbitos e ele é feito por um centro usado pela Casa Branca (o Institute for Health Metrics and Evaluation, ligado à universidade. A pesquisa, divulgada essa semana, também estimou que a Bahia pode chegar a 5.848 mortes no período). 

Mas as nossas projeções não são muito diferentes. Não quero alarmar ninguém, mas, se nada for feito, é o que pode acontecer. Esse pessoal foi quem aconselhou a força-tarefa da Casa Branca. A Universidade de Washington, em Seattle, fica em um dos primeiros estados a ser contaminado mas que deu conta porque eles fecharam tudo logo. 

Como o senhor vê a situação de cidades do Sul da Bahia, como Uruçuca, que tem o maior índice de mortalidade, de 11%, maior do que a média do estado? E como as medidas estão sendo avaliadas no Sul da Bahia?

Eu tenho acompanhado o Sul da Bahia há semanas e conversei sobre isso no comitê. Já foi passada há várias semanas a preocupação com o Sul da Bahia. Estou vendo aqui nesse instante as cidades que eu olho sempre: Jequié, Ilhéus, Itabuna, Teixeira de Freitas, Itamaraju, Eunápolis, Vitória da Conquista. Estou seguindo essas cidades há bastante tempo e, evidentemente, é um dos grandes focos da Bahia. 

Estamos seguindo também Feira de Santana e a região ao redor, que abriu e fechou, abriu e fechou de novo. Na sexta-feira passada eu estava conversando com o pessoal de lá e estou olhando também Juazeiro, por causa da proximidade com Petrolina. Existem esses focos claros que estamos acompanhando e, novamente, a proibição inicial dos ônibus intermunicipais foi muito importante, mas as medidas precisam continuar. 

Estamos vivendo o período mais difícil ou ainda está por vir? 

Acho que estamos no meio do momento mais difícil. Já entramos nele. Mas temos outra grande preocupação que são as outras endemias brasileiras como dengue e chikungunya, que são muito comuns no Nordeste. Por isso, o comitê já mencionou a preocupação com a testagem e com medidas profiláticas para chikungunya e dengue, porque vai ser a tempestade perfeita ter esses casos junto com síndromes respiratórias por vírus, como influenza, H1N1 e coronavírus.