Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 22 de junho de 2024 às 08:00
Estar no mundo das empresas é, tantas vezes, ter de respirar fundo e não responder à tosquidão do que está sendo dito, ou pior, escrito, gravado sem vergonha no algoritmo da posteridade. Sim, porque vergonha quem tem é a gente – e alheia – e não quem diz que cuidar de pessoas numa empresa é perfumaria. Ou que o oposto de fazer acontecer é poesia, numa definição que deixaria o pobre coitado do Aurélio tremendo no túmulo.
São muitas as estratégias de sobrevivência na selva (também conhecida como mercado empresarial, business, esse lugar onde todo mundo fala inglês e daqui a pouco mandarim). Outro dia uma conhecida genial tava contando a sua: enquanto a reunião acontece online, ela segura uma caneta e deixa o volume baixo. Alto mesmo é o vídeo de Jade, aquela influencer Jade Comeria, comentando as comidas mais doidas. É o jeito dela de não se estressar. Se ouvir seu nome, a gênia volta ao jogo, dá uma pausa em Jade e comenta qualquer coisa bem amena. A pressão sobe? Não. Briga no trabalho? Não. E o dinheiro e a comissão tão lá na conta dela no início do mês. É preciso saber viver, já diria a música.
Da teoria pra prática a distância é muita. É claro que nem todo mundo pode ter o luxo de reuniões online pra amenizar a dificuldade que é conviver com gente tosca no trabalho. Vamos falar disso, aliás? Gente que se a gente pudesse não dividia nem balcão de padaria na hora de comprar uma bala, mas que tá ali todo dia. Como é que faz? É intercalando as frases de Inteligência Emocional com Pai Nosso antes de dormir, lendo os estoicos ao acordar, e olhe lá que pode nem assim dar certo. É Marco Aurélio, orixá, Deus, Buda, é todo mundo junto e ainda falta paciência pra aguentar. Não, a parte mais difícil da vida adulta tá longe de ser os boletos: é a gente tosca que precisamos tolerar pra pagar os bichinhos.
É ouvir “Eu dou meu treinamento de vendas e depois você entra com seu trabalho de perfumaria”. Que é sempre a parte de gente, que vira e mexe ouve que atrapalha os fluxos, os prazos, o andamento do que funcionaria muito bem sem. Que bem o diga a Justiça do Trabalho, cada dia mais entupida de processos de assédio. É mais barato treinar e cuidar das pessoas do que pagar na justiça. Tem estatística, estudo de universidade confiável, tudo mais: mas a gente acredita mesmo é no gerente de vendas com sangue no olho que gosta de chicote no lombo de quem trabalha. Que acha que pausar pra respirar é frescura e bom mesmo é produtividade 24/7 (vinte e quatro horas por sete dias na semana). Pagando pouco. Pros outros, claro.
Pra quem pensa assim, qualquer coisa diferente disso é perfumaria. Ou poesia, como disse um executivo que eu costumava admirar até esse dia dessa fala infeliz. Tadinho, tem pouca leitura. Tivesse lido um pouco mais, um tiquinho mais de tempo na biblioteca da escola na hora do intervalo, talvez não tivesse dado esse fora. Poesia, meu amigo, tinha te salvado dessa. Uns versinhos de Mário Quintana e você já tava menos bobo, menos fã de qualquer besteirinha dos Estados Unidos, com mais senso crítico pra refletir sobre seu papel na sociedade.
Às vezes a gente vacila porque acha que vai salvar o mundo lendo os manuais todos de empresariado. Não é no Vale do Silício nem na China que estão as respostas não: é aqui. Vá dar um passeio no museu de sua cidade (viajando fora do país não vale, largue de bobeira), vá andar na rua, sentir cheiro de gente no elevador Lacerda. E volte, pra ver se você não olha a empresa (e a vida) com outro olhar. Um olhar de gente.
Mariana Paiva é escritora, jornalista, doutora pela Unicamp, consultora em Diversidade na Awá Cultura e Gente e Head de DE&I no RS Advogados