Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 6 de julho de 2024 às 11:00
Teoricamente toda história de amor começa com amor, mas nem todas terminam com amor. Às vezes o ciclo se fecha com rompantes, pneus cantando no asfalto, marcas roxas no corpo, ameaças, manchetes de jornal, famílias devastadas. Mas na teoria toda história de amor começa com amor. O problema é o que às vezes vem depois.
É que relacionamento abusivo geralmente não começa abusivo, e nem é de todo ruim, ao contrário do que se possa pensar. Tem seus momentos felizes, foto alegre, um respiro em meio ao caos. Mas é que o inferno chega, e sem demora. Começa com uma voz levantada, um tom a mais que é “só nervosismo”, por qualquer coisa externa ao relacionamento, e por isso mesmo passa como normal. Mas é um limite que se vai. O primeiro.
Depois uma reclamação do tamanho da roupa, um ciúme fora de hora, uma implicância com as amigas. E aí uma porta batida, um murro na parede, um grito mais alto, um objeto arremessado longe. Nessa hora ainda se pensa, inocente: “Mas ele não me bateu”. Como se tanta violência descontada em coisas não fosse vontade de descontar a raiva na carne, mas é tão difícil assumir, tão duro aceitar que o que se chama amor pode ter outros nomes. Ninguém ensinou. Mas o roteiro - bote fé - é sempre o mesmo.
Ou você pode ser tirada de um carro às seis da manhã, numa avenida movimentada da cidade, e deixada no meio do tráfego, porque ousou questionar qualquer coisa que o outro achou que não devia. Ou ser arremessada do outro lado do banheiro por quem, uma semana antes, cantava que “nossos destinos foram traçados na maternidade”. E então uma farmácia, Reparil gel para disfarçar os roxos no corpo e a vergonha infinita na alma de não saber sair da relação que lhe machuca. Como explicar às pessoas? Na dúvida, o mundo ao redor vai ficando mais longe, e você mais isolada.
Enquanto a mulher que está numa relação abusiva é taxada de passiva, o homem violento segue vida, com tapinhas nas costas dos amigos e da família. Sim, porque vítimas a gente conhece um monte, história a gente pode contar por uns 200 anos (aqui falei de algumas, mas sabemos centenas), mas veja bem, e homem abusivo? Desses a gente mal comenta (isso quando não deixa baixo o acontecido pra preservar a reputação dele). Porque estão em nossas famílias, em nossos círculos de amizade, no trabalho, na vizinhança, e por aí vai. Na real? A gente prefere nem tocar no assunto pra não ter que rever nossas relações. Ah, “mas nem todo homem”. Óbvio e felizmente que nem todo homem. Então relaxe e deixe a carapuça pra quem serve. Porque tem muita gente pra vestir, viu?
Somos moralmente flexíveis. Falhamos enquanto sociedade: abrandamos com os agressores e penalizamos as vítimas. Se descer um ET aqui agora, a gente se enrola demais pra justificar um absurdo desse, e não é pra menos. Como é que a gente explica tanta foto abraçada com gente ruim, sem sentir vergonha? Ou será que a gente nunca tinha pensado nisso?
É que amor é pra pessoa ser mais feliz do que é sozinha. Se for diferente disso é consumição, e a vida é rápida demais pra aperto de mente. O mal é que a gente demora pra aprender e assiste filme demais de jornada do herói, que a pessoa tem que se lascar toda pra ter uma recompensinha no fim. Mas não. Amor né pra doer na alma não, e menos ainda no corpo. Tem ajuda sem julgamento no meio do caminho: vá conhecer o MADA - Mulheres que Amam Demais Anônimas -, procure acolhimento nas amizades, tem o 180 pra ligar, tem uma vida inteira pela frente pra viver. Não é pouca coisa.
E o que não quer levar a gente deixa de fora da foto. Seja de que foto for.
Mariana Paiva é escritora, jornalista, head de DE&I do RS Advogados, doutora pela Unicamp e idealizadora da consultoria Awá Cultura e Gente