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A mulher despachada


 

Tão necessário quanto ser uma mulher educada e gentil é ser uma mulher despachada

  • Mariana Paiva

Publicado em 13/10/2024 às 08:00:00

Quando eu era pequena meu maior medo era crescer e virar uma mulher despachada. Na família de minha avó elas eram muitas: falavam alto, andavam rápido, respondiam na hora do desaforo. Umas eram risonhas, outras carrancudas, mas todas - incluindo minha vó - eram mulheres despachadas. Cresci morrendo de medo e virei igual: eis-me aqui, uma mulher despachada. Demorei anos pra entender que, nesse mundo em que vivemos, tão necessário quanto ser uma mulher educada e gentil é ser uma mulher despachada, que aprende a impor limites e escolhe por si mesma.

Foi assim que minha vó e as outras da família dela cresceram, casaram, tiveram filhos, trabalharam, e ainda assim seguiram sendo quem foram até o fim. No meu olhar de criança, eu só enxergava o lado bruto: procurava florzinhas, delicadezas de paninhos bordados, doces que demoravam horas na cozinha, e não encontrava. Tinha mulheres reais, com dores reais e alegrias esvoaçantes quando se reuniam e faziam festas, todas vestidas parecidas. Cantavam, valsavam juntas ao som de Roberto Carlos - o preferido -, essas mulheres despachadas.

Aos poucos fui entendendo. Nessa ciranda tinha lugar pra quem vinha depois, elas abriam espaço pras filhas, pras netas. Elas que fincavam com força os pés na realidade de ter o almoço pronto meio-dia porque acordavam cedo e era essa a hora da fome bater. Que guardaram nas gavetas os escritos nunca publicados para que hoje minhas palavras vão parar tão longe que eu nem sei.

Minha tia-avó Dalva que gosta tanto de futebol, fã demais do Bahia, e que me levou numa biboca pra me ensinar a pedir para ser atendida: "moço, me despache!", ela falou pra eu repetir. E eu calada. Me levando pelo caminho de ser uma mulher despachada e eu pequena encolhida feito bicho do mato. A longa estrada de se tornar quem você é, um clássico.

Fora isso, de perto, tinha muita sensibilidade nas mulheres despachadas de minha família. Elas decidiam por elas, o que tantas vezes era duro para quem estava ao redor - não há nada o que fazer além de aceitar -, mas o amor vinha em porções generosas de moqueca de peixe, pudim de leite, fotografias espalhadas pela sala. O amor que dispensava palavras e explodia em gestos: não tinha bordadinho, ponto de cruz, mas tinha um profundo respeito por quem era a outra pessoa. Elas te enxergam, as mulheres despachadas. Pense nas que você conhece. São as únicas pessoas do mundo capazes de tirar a comida que você não come da marmita do caruru, mesmo que tenha ido igual para todo mundo. Um tipo especial de amor que flerta com a liberdade de ser quem se é, de aceitar a outra pessoa, de abrir portas em vez de fechar.

Nas mitologias a gente vai longe para explicar tanta coisa e nem precisa: tá tudo aqui perto, na árvore genealógica da gente. As mulheres que correm com os lobos são nossas avós, que criaram filhos dirigindo escolas, dando banho em cachorro brabo, encarando marido de porre e com amantes. E se não fossem despachadas, como teriam sobrevivido a tanto, como teriam mantido acesa a chama preciosa da alegria em todas as vezes em que ela quase se apagou?

Nesse mundo em que menina não anda em paz sozinha pela rua, em que a gente teme os banheiros públicos, as pessoas conhecidas e as desconhecidas, aprender a ser despachada é uma necessidade. Talvez não evite nada, mas ajuda saber que princesa tem pouco lugar na vida real, se você não mora num castelo e nem tem súditos quando a porta se abre.

Pra mulher de carne e osso, o que sobra é aprender a ouvir sua própria voz, entender seu querer, lutar por ele, e, se preciso for, falar mais alto. Sem perder a alegria, essa faísca vital. Um furacão chamado mulher despachada.

Mariana Paiva é escritora, jornalista, idealizadora da Awá Cultura e Gente, head de Diversidade, Equidade & Inclusão do RS Advogados, e doutora em Teoria e História Literária na Unicamp