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Broto legal


 

E aí? A gente fica chorando pelo chardonnay derramado ou vai plantar umas sementes novas, broto?

  • Kátia Najara

Publicado em 04/08/2024 às 09:46:30
Broto. Crédito: Reprodução

Houve uma época em que eu julgava impossível conhecer a todos os restaurantes da cidade, de tantos que eram.

Havia os tradicionais, os de clubes e hotéis com seus pianos-bares e garçons de uma vida inteira embecados em seus uniformes de pinguim; um sem-fim de churrascarias com salões lotados a se perder de vista; os populares de bairros esparramados pelas calçadas; os muitos chineses e italianos, franceses e até alemães; havia os pequenos bistrôs escurinhos de mutreta; dezenas de vistas estonteantes para o mar - de Itapuã a Periperi; contemporâneos, étnicos, e muitos regionais incríveis - alguns com aqueles shows folclóricos para gringo ver; dezenas de executivos legais no Comércio; restaurantes-escolas e secretos de fundo de quintal. 

Os de feira, de beira de dique e canal; os clandestinos de caça proibida, e claro, dezenas de rodízios e (bons) bufês a quilo.

MODELOS CADUCOS

Mas esse quadro mudou bastante. Inflação, impostos, o complexo de caramujo pós-pandemia; o combo miséria-violência- (in) segurança pública; encargos trabalhistas versus dificuldade de mão-de-obra especializada; modelos de contratação obsoletos e relações trabalhistas desrespeitosas, e a coisa só piora com o tempo ruim da crise climática afetando drasticamente a oferta supostamente inesgotável da fonte mamãe natureza - o que eleva sobremaneira o preço dos insumos, para o desespero das empresárias e clientela.

A maioria desses problemas tem sido vivenciados em escala mundial provocando uma queda vertiginosa no número de restaurantes mundo afora.

Não bastasse a complexidade do negócio mesmo num hipotético ambiente minimamente salutar, calcule nesse cenário walking dead.

O que está faltando para que todo munda entenda que o mundo mudou e alguns modelos caducaram?

NOVES FORA

Vou chover no molhado. Tá certo que o ponto central é a comida, mas ela não sustenta a casa sozinha. Eu posso pi-rar no rango, mas se o ambiente não for confortável (em vários níveis) não vai ter fidelização certa.

Dos operantes - poucos bons e muitos ruins - eu ainda faço conta de menos e vou eliminando por: ostentação, público conservador, equipe infeliz, calor, barulho, risco de assalto, preços inviáveis, música ao vivo e fila de espera, por exemplo.

Para mim sobra pouca coisa: os populares do coração, alguns poucos tradicionais que não perderam o rebolado, uns bons regionais, aquele patrimonial responsa, meia dúzia de chefs coerentes e gringos imperdíveis, e mais nada.

CORAÇÃO DEVASTADO OU BROTO LEGAL?

São muitos corações devastados, eu sei. Investimentos de uma vida perdidos, sonhos despedaçados, cozinhas abandonadas, centenas de placas de venda e aluguel. Mudanças de curso e carreira, clientes órfãos, gente boa desempregada.

Mas é preciso ouvir o que o mundo está dizendo. Porque se por um lado nunca esteve tão difícil manter um restaurante, por outro as pessoas ainda não pararam de comer. E talvez seja o caso de semear os corações devastados com as sementes do bom senso, da inteligência, da criatividade. Remendar os sonhos e desenhar-lhes um novo layout. Desviar os olhos do umbigo para o mundo e sua mais nova ordem mundial. Criar um novo.

Significa que para além do talento, capacidade técnica e empreendedora, e até mesmo do capital inicial, mais do que nunca abrir um restaurante hoje requer boa informação sobre economia, geopolítica, sociologia, ciências ambientais. É preciso engajamento político (para além da política), empatia, criatividade, retidão. E coragem.

As muitas mudanças comportamentais pelas quais temos passado já apontam para uma série de tendências como as tais "experiências" imersivas, os diversos serviços oferecidos pelas ghost kitchens, os pop-up's, os plant based, cozinhas e restaurantes comunitários. Tudo isso são novas formas de existência e sobrevivência. E vem muito mais.

E aí? A gente fica chorando pelo chardonnay derramado ou vai plantar umas sementes novas, broto?