O Senhor Elisabeth
Em menos de um segundo, ele lava três os quatro umbus e me oferece de graça. “Puro mel”, diz, diante da minha recusa, já mordendo um deles
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Kátia Borges
katiamacces@gmail.com
Em menos de um segundo, ele lava três os quatro umbus e me oferece de graça. “Puro mel”, diz, diante da minha recusa, já mordendo um deles
O Senhor Elisabeth parece não estar nada bem hoje. Fala ao celular com a testa franzida antes de se debruçar na janela do carro. Não sorri logo como de costume. Noto que discute com alguém ao telefone e que lamenta, movendo tristemente a cabeça de um lado para o outro. A expressão de seu rosto denuncia algum problema.
Quando, finalmente, aproxima-se do automóvel, o riso forçado, emoldurado pelo retângulo irregular da janela, faz a saudação costumeira. “Bom dia, Senhora Elisabeth, o que vai ser hoje?”. Foi essa forma de tratamento que deu origem ao apelido com que me refiro a ele. Desconhecemos nossos verdadeiros nomes.
Em menos de um segundo, ele lava três os quatro umbus e me oferece de graça. “Puro mel”, diz, diante da minha recusa, já mordendo um deles. E apresenta tantas alternativas de compra e ofertas com preços incríveis que fico confusa e até esqueço o que me levou a parar ali. “Uvas! Preciso de uvas, mamão, mangas, jabuticabas”.
Alguém o chama do outro lado da barraca, que fica na esquina entre duas ruas, e ele some. Permaneço estacionada em fila dupla. Pelo retrovisor, vejo que o Senhor Elisabeth retoma a ligação. A mesma? Parece. Há algo entristecido em seu semblante, sombra que atravessa a tarde como se a partisse em duas metades. Laranjas, limões talvez.
Penso em girar a chave na ignição, diante da demora, mas ele retorna, ouve o pedido e desaparece outra vez. Posso ver a sua imagem no espelho central. Observo como vai recolhendo as porções e pondo em pequenas sacolas plásticas, enquanto se move, agilmente, entre as fileiras formadas por caixotes de madeira.
Suas mãos calejadas acrescentam às latas de medida, antigas embalagens de óleo de cozinha, um pouco a mais de cada fração. Recebo as encomendas já a meio-vidro, e vou lançando os pacotes verdes no piso. Silencio o desejo de questionar ao Senhor Elisabeth se está tudo bem, sei que não, não quero soar esquisita.
Alguns vínculos cotidianos têm suas próprias regras. Pago as compras, sigo meu caminho. Mas, já em casa, abro o I Ching e pergunto ao oráculo sobre o Senhor Elisabeth. O temido hexagrama 23 aparece com a sexta linha em mutação: há um fruto ainda não comido, um fruto que cairá do céu. Tudo vai ficar bem com ele, penso comigo.