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O espetáculo do corpo


 

Um influencer fez uma comparação bem velhaca dia desses: “homens envelhecem, mulheres derretem”. Vamos aos dicionários

  • Kátia Borges

Salvador
Publicado em 19/11/2023 às 05:00:00

Só quando envelhecemos, descobrimos que tudo que nos diziam sobre a velhice é verdade. Aos vinte anos é pouco provável imaginar que os traços tão bem delineados de nossos rostos desaparecerão algum dia. Você chega ao espelho, numa manhã qualquer de domingo, e dá de cara com uma cara que parece já não ser a sua.

Ao menos não aquela de antigamente, com a qual você encarava a pista de dança cheio de disposição e marra ou ficava bem quietinho no seu canto, com a segurança de estar pronto a entrar em cena em algum momento da noite que, afinal, sempre é uma criança. As mãos denunciam, comenta um amigo. O pescoço grita, diz outro.

E uns termos bem ridículos começam a entrar no seu vocabulário: bigode chinês, código de barras, pés de galinha. Pintar ou não os cabelos vira um impasse muito sério. Prefiro manter os meus grisalhos, comenta uma colega de trabalho. Deus me livre de cabelos brancos, contesta uma outra. Estar acima do peso, literalmente, pesa.

Ah, mas, se você emagrecer muito, todas as suas rugas saltarão dos seus esconderijos. Maracujá de gaveta, já escutou essa? E as tatuagens feitas ao longo da juventude? Murcham junto com os músculos, alguns lamentam. Especialistas em estética anunciam uma remodelação facial que espanta para longe a aparência de cansaço.

Do modo mais natural possível, enfatizam, sem bisturi. Fotos de antes e depois mostram os resultados. Um conhecido conhece uma conhecida que aplica Botox a preços módicos. Há alarde sobre a eficácia do jejum intermitente para mulheres acima dos 50. E é claro que se pode apostar no Crossfit e sair rolando pneus pelas ruas.

Musculação, remo, corrida também valem o custo. Como esquecer as medalhas de atletas master como Nora Rónai, que começou a nadar profissionalmente aos 69? Uma listinha de cirurgias surge de vez em quando nas conversas. Bichectomia, ritidoplastia, blefaroplastia. Ah, essa última até o presidente Lula fez outro dia.

É difícil acreditar que o tempo passa, visto que ele parece estar sempre à nossa disposição. E é bom que seja assim, que na primeira metade da nossa existência o erro predomine. Errar é “umano”, alguém escreveu, já errando. “A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer”, diz uma letra de Arnaldo Antunes.

O requisito básico é estar vivo para o espetáculo do corpo. E, vamos combinar, Mick Jagger manteve o charme. O mesmo se pode dizer de Gil e Caetano Veloso. Mas vejam que citei apenas homens. Um influencer fez uma comparação bem velhaca dia desses: “homens envelhecem, mulheres derretem. Vamos aos dicionários.

Aulete lista, como sinônimo de derreter, liquefazer. Priberam define: dissipar. Michaelis vai mais longe: destruir completamente. Aurélio acrescenta: amofinar. E não é que o influencer de menos de dois neurônios alcançou grande profundidade ao definir o modo como a sociedade trata as mulheres. Sim, mesmo quando muito jovens.