Jayme Fygura
Junto com ele se vai boa parte de um mundo singular que teve seu auge nas décadas de 80/90, enquanto o país avançava rumo à redemocratização e a ideia de futuro se nutria de uma eufórica incógnita
-
Kátia Borges
katiamacces@gmail.com
É quase impossível descrever em poucas palavras Jayme Fygura, artista plástico e performer baiano que morreu em 26 de novembro, aos 64 anos. Arrisco-me a dizer que junto com ele se vai boa parte de um mundo singular que teve seu auge nas décadas de 80/90, enquanto o país avançava rumo à redemocratização e a ideia de futuro se nutria de uma eufórica incógnita.
Muitas vezes o sugeri como exemplo de fonte em sala de aula, incentivando o difícil desafio de descrevê-lo nos exercícios da escrita de perfis biográficos. Sempre que seu corpo, encapsulado dentro de um personagem-arte que assustava e fascinava as pessoas nas ruas de Salvador, surgia na superfície laminada da lousa, via-me diante de jovens olhos arregalados.
Incrédulos, os alunos tentavam entender aquele homem negro e alto, coberto dos pés à cabeça com todo tipo de quinquilharias que compunham uma armadura feita em couro e metal, espécie de cavaleiro andante perdido entre dois séculos. Não se via seu rosto, mal se delineavam seus dedos das mãos, envoltos por luvas puídas que mostravam pouco mais que as falanges.
Impossível distinguir os contornos exatos de seus pés, maltratados pelas caminhadas, expostos em sandálias improvisadas ou protegidos por coturnos. Sua imagem, desenhada pela luz do retroprojetor, ultrapassava tudo que aqueles estudantes conheciam. Não havia uma máscara que, arrancada de súbito, desvelasse quem habitava aquela escultura humana.
Em busca de seus rastros, reviro arquivos e fotografias na internet. Sou eu, agora, a voluntariamente enfrentar o desafio de tentar entender, ainda que brevemente, a performance de sua existência controversa. Nessa jornada solitária, localizo um depoimento de 2013 no Dicionário Manuel Quirino de Arte da Bahia, que lista suas obras e sua trajetória como artista.
Ali encontro o Jaime de Andrade Almeida, menino nascido em Cruz das Almas, que se mudou aos 5 anos para Salvador e que relembra uma infância e adolescência descritas como terríveis, marcadas pelo pavor da escola e pela descoberta precoce do talento criativo. Serviu ao exército, “com honra ao mérito”, trabalhou em gráficas, teve carro, dinheiro, mulher, filhos e “se rasgou”.
Nesse “rasgo”, surge o Jayme Fygura artista que, ao “se rasgar”, torna-se alvo de um apedrejamento literal nas ruas — quatro dentes quebrados, hematomas no rosto. Só mesmo armadura e máscara para servirem de proteção contra uma sociedade inteira. Na época, dizia dormir em um caixão, cedido por uma funerária, “aguardando a morte chegar”. Seu ateliê se chamava Sarcófago.
Sobre esse ícone soteropolitano, há muito folclore e histórias que poucos contam ou conhecem. Tocou guitarra numa banda de rock. Foi marido e pai, “um pai incrível”, descrevem os filhos. Artista de talento inquestionável, performer de coragem. Seu rosto, numa época em que mal detemos a posse de nossas identidades, foi visto apenas pelos mais íntimos. E, mesmo na morte, manteve a dignidade e o controle da própria imagem. Um grande feito!