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Sommelier fantasma, OSBA e cultura baiana


 

A pessoa tem sempre uma opinião e uma contundente crítica a fazer, sem sequer fazer ideia do que está acontecendo

  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 17/07/2023 às 05:05:24
Gil Vicente Tavares 2. Crédito: Reproduçao

Salvador tem um tipo de personagem curioso. É aquela pessoa que por mera suposta adivinhação, a partir das mais superficiais, e, por vezes, equivocadas e folclóricas referências, tem aquela velha opinião formada sobre tudo.

A pessoa leu dois livros de Jorge Amado, mais algum de João Ubaldo Ribeiro que ele não lembra o nome, e já tem na ponta da língua alguma opinião veemente sobre a literatura baiana. Não gosta por isso, vê problemas naquilo, tem ressalvas quanto aquilo outro. Ao menos ficasse na região grapiúna, e, de Adonias Filho a Sonia Coutinho, perceberia que sequer ali se pode classificar um estilo ou tendência. Imagine se falar em literatura baiana!? A diversidade e a qualidade de nossa criação literária e poética, para ser realmente apreciada, precisaria de um sobrevoo ao menos por uns vinte, trinta nomes cruciais só do século XX que, com certeza, a pessoa sabichona nunca leu.

Nas artes cênicas, o mesmo. A pessoa tem, prontamente, uma dúzia de opiniões seguras, enfáticas e críticas ao teatro baiano, julgando que o problema do teatro baiano é tal, que sente falta de tal coisa nas peças daqui, e desfila rapidamente seus preconceitos e ignorância com a empáfia de um doutor no assunto, com ao menos cinco livros publicados sobre o tema. Melhor: ainda tem a solução para todos os nossos males. Devia fazer mais assim, devia fazer mais assado.

Esse tipo de gente está sempre dizendo que falta em Salvador tal coisa, e muitas vezes é uma coisa que Salvador tem, ou teve, e deixou de ter porque o tipo de gente que poderia frequentar e estimular a existência disso não vai. E depois reclama porque não tem.

Meu grupo, o Teatro NU, está há seis anos em cartaz com um clássico de Tchekhov, uma montagem premiada. Vamos voltar agora, na Sala do Coro, em agosto, e mais uma vez Salvador, pra essa gente, não monta o gênio russo; como em tal país ou tal cidade.

Isso me lembra uma vez, que, para celebrar meus 15 anos de carreira, eu montei o mesmo texto de minha formatura, o Quarteto, de Heiner Müller. Meu grupo estava desde 2011 rodando o país e fazendo temporadas de Sargento Getúlio, a partir da obra de João Ubaldo Ribeiro. Havíamos acabado de fazer o projeto Teatro NU Cinema com dramaturgia baiana. Estávamos às voltas com Os Javalis, texto meu sobre uma invasão javalinesca em plena cidade tropical. E o grupo se preparava para montar um musical em homenagem ao centenário de nascimento de Dorival Caymmi.

Eis que uma pessoa vai assistir ao Quarteto, a única peça minha até hoje que ela viu, e me sai com essa pérola, em tom de advertência: você precisa montar mais coisa brasileira.

A esse tipo de gente eu daria o título de sommelier cultural fantasma. A pessoa tem sempre uma opinião e uma contundente crítica a fazer, sem sequer fazer ideia do que realmente está acontecendo, sem aparecer, e sem, com isso, ter qualquer capacidade de opinar de maneira embasada.

E isso tem valido para o que se tem falado da Orquestra Sinfônica na Bahia (OSBA).

Desde que Carlos Prazeres assumiu a OSBA, houve uma renovação nunca dantes vista no repertório de concerto da orquestra. De maneira recorrente e programada, passamos a ouvir compositores como Messiaen, Kodály e Pärt dividindo o concerto com baianos como Paulo Costa Lima e Lindenbergue Cardoso.

Aquele repetitivo e óbvio repertório com Beethoven, Haydn e Tchaikovsky - também lindo, e que continuou fazendo parte dos programas - começou a dar mais espaço a Schönberg, Hindemith e Bartók.

As cameratas passaram a ter mais visibilidade, com repertórios mais robustos, e as séries criadas diversificaram o repertório de acordo com o espaço; trazendo peças mais intimistas e sacras para igrejas, obras mais densas em ambientes mais aconchegantes como museus, além de um repertório mais clássico no palco principal do Teatro Castro Alves.

E, em meio a tudo isso, aos cerca de 45 concertos anuais, os tão falados 4, somente 4 concertos populares.

Deu certo. Inegavelmente, o público da orquestra aumentou muito e até fã clube foi criado. Aplausos?

Há tempos que vejo sommeliers culturais fantasmas batendo nos concertos populares da OSBA como razão do sucesso e desgraça de seu programa. Uma prática recorrente em orquestras do mundo, da Filarmônica de Berlim à Petrobrás Sinfônica, de repente se tornou um anátema em se tratando de Bahia.

A Orquestra Ouro Preto rodou o país tocando Alceu Valença, com o mesmo cantando. Vai tocar com Diogo Nogueira. A Filarmônica de Minas Gerais tocou com Lô Borges e seu diretor artístico comemorou a aproximação com o popular. A Petrobras Sinfônica fazer concertos tocando Coldplay, Queen, Metallica, Pink Floyd e Los Hermanos? Tudo bem, também. Mas, de repente, a OSBA virou para essa gente uma orquestra criminosa por tocar música baiana, música de São João (nordestina) e música romântica brasileira (a mais popular possível).

Nem vou tocar na questão do preconceito com nossa própria cultura e estilos musicais, frente a bandas como Scorpions e Metallica, que tocaram e gravaram, respectivamente, com a Filarmônica de Berlim e a Orquestra de São Francisco.

Tampouco preciso dizer, aqui, aos que também batem no Cine Concerto, que a OSBA tocar John Williams e Nino Rota, em vez de novidade, é repertório requentado. O primeiro foi tocado e gravado pela Filarmônica de Berlim, com seus sucessos de cinema, e a Filarmônica do Teatro Scala, de Milão, dedicou um disco inteiro ao segundo e suas trilhas para Fellini; só para citar dois exemplos de vários, mundo afora.

Mas valeria lembrar, e fui testemunha ocular, que vem de décadas a aproximação da OSBA com o popular. Estive no último concerto antes do fechamento do TCA, onde a orquestra tocou com os Filhos de Gandhy, e também nos concertos onde Gil e Caetano cantaram suas canções acompanhados da mesma orquestra, ainda no século passado. E até álbum duplo com canções populares foi gravado pela OSBA, homenageando compositores baianos.

Duvido muito que em sua maioria essa gente tenha ido, ou sequer saiba e aplauda as programações mais “sofisticadas”, “rebuscadas” da OSBA. Com certeza, atacam um São João Sinfônico sem apreciar, aplaudir ou ao menos valorizar os concertos denominados “Futurível”, em que o repertório é majoritariamente de compositores contemporâneos ou de vanguarda.

O que parece importar é ter opinião. Não só criticar, como ainda dar soluções. Registrar sua indignação com a literatura baiana, o teatro de Salvador ou os concertos populares da OSBA; por exemplo. Mesmo que, para isso, se cometam injustiças, se evidenciem preconceitos, se escancarem ignorâncias. Como diria Gregório de Mattos, "A cada canto um grande conselheiro, que nos quer governar cabana e vinha; não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro".

Sommeliers culturais da Bahia são como fantasmas. Ninguém os vê aparecendo por aí, e só assustam os bestas que dão valor a superstições, como essas acima e tantas outras envolvendo a cultura baiana; que segue forte, pulsante, diversa e misturada, chamando a atenção do mundo justamente por isso.