Ainda estamos aqui
Não tem como não fazer nada, pensam os que querem um país menos desigual, mais democrático e justo
-
Gil Vicente Tavares
gil.vicente@correio24horas.com.br
Salvador tem um sério problema. Sua população encara o público como privado. Ao ouvir um som alto, ao parar um carro em faixa dupla, ou até tripla, ao usar um banheiro coletivo de maneira displicente e porca, ao deixar de sinalizar uma manobra ao pedestre - e não parar na faixa -, em diversas circunstâncias, ignora-se o outro em benefício do próprio desejo, conforto, necessidade.
O princípio público deveria ser o de pensar que se estamos em coletivo, devemos agir pelo coletivo e de acordo com as necessidades do coletivo, integrado a ele. Não contra ele.
Fui assistir ao filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, quinta passada. Na fila acima da minha, duas senhoras comentavam o filme em voz alta. Fui o primeiro a fazer um discreto psiu. Continuaram. Uma moça próxima então pediu para fazer silêncio, pois estava atrapalhando o filme. Elas riram sarcasticamente e continuaram. Da quarta ou quinta vez, um rapaz mais exaltado pediu para ambas calarem a boca, que se queriam ficar falando, que ficassem em casa, que ali era um cinema, um local público. A que mais falava respondeu debochadamente que justamente por ser um local público, que ela podia falar e que ninguém podia tolher sua vontade.
A ideia de uma convenção tácita de sociabilidade é algo impossível em Salvador. Não pensamos no outro. Agimos de acordo com nossos desejos e interesses, independente do fato de que isso possa atrapalhar um lazer, um trânsito, um sono ou uma locomoção. Aquele lembrete encontrado nalguns banheiros públicos, falando em manter o banheiro limpo, pois outras pessoas o usarão depois de você, é a evidência mais clara que não mantemos banheiros limpos porque estamos cagando (muitas vezes literalmente) para quem vem depois da gente. Já usei, usei como quis, não vou ficar mais tempo ali, portanto a latinha no chão, o mijo naquele poste, o trânsito atrapalhado, a música alta ao lado de alguém na praia, a conversa alta no cinema tá de boa, e os incomodados que se mudem.
O filme de Walter Salles fala sobre um dos piores períodos do nosso país. A Ditadura Militar que se abateu sobre nós desgraçou o Brasil de todas as maneiras. A cada dia, novas revelações sobre corrupção, sobre torturas e assassinatos criminosamente perpetrados pelo Estado, a inflação altíssima, destruição da Amazônia e massacre e grilagem em terras indígenas, desestruturação do ensino público, tudo isso evidenciou algo que poucos param para pensar. Os militares, depois da criminosa Guerra do Paraguai, tiveram como única função repressora e assassina matar os próprios brasileiros. Seja em repressão a levantes e dissidências, seja em perseguição a oponentes políticos, temos forças armadas que usam a força de suas armas contra nós mesmos, cidadãos brasileiros, apenas.
No filme, um ex-deputado é detido ilegalmente por ajudar exilados, presos do regime de exceção, e foragidos. Seu crime foi tentar ajudar quem lutava pacificamente pelo bem comum, que era tirar o Brasil de uma situação em que só quem estava de acordo com um sistema ditatorial, repressor, censor, assassino e torturador poderia ter sua liberdade e direitos garantidos.
A história do Brasil sempre foi comandada pelos donos do poder. As terras, as leis, os direitos e o dinheiro público sempre foram considerados bens de um pequeno grupo social no país. O latifúndio não foi a conquista de bravos aventureiros que desbravaram matas virgens pelo bem do agronegócio. As terras eram distribuídas pelas famílias mandantes, e qualquer tentativa de maior limitação de hectares, para que mais pessoas pudessem se beneficiar na distribuição de terras, era oficialmente derrubada pelos nossos três podres poderes.
O fim da escravidão, a criação do décimo terceiro salário e o bolsa família, políticas essenciais para que nosso país, daqui a alguns séculos, se torne menos desigual, foram vistas como ações que quebrariam a economia. Basta traduzir “economia” por tirar alguns milhões excedentes das mãos de quem manda, e de quem acha que o dinheiro público é seu; e dar uma pontinha para a ralé é um insulto.
Assim como o dinheiro, a formação das forças armadas também veio acompanhada do estabelecimento de uma força tutelar do Estado. Não está do agrado, os militares vão lá e derrubam. Foi assim com a proclamação da república - um golpe militar dos descontentes, dentre outras coisas, com o fim da escravidão -, e foi assim com a ditadura de 1964.
A grande questão de quem apoia esses golpes é que não se pensa no público, na população como um todo, e, consequentemente, é contra quem pensa, age, se comporta e nasceu diferente. Quem até hoje - e isso me assusta - apoiou o golpe de 64, concorda e aplaude que os militares tenham dado corretivos nos vagabundos subversivos.
Passei o filme todo numa mistura de vergonha e tristeza. Do momento em que invadem a casa de Rubens Paiva, até o momento em que a família vai para São Paulo, tensão e indignação se misturavam dentro de mim. A família se muda depois da notícia do assassinato de Paiva. Mas antes disso, há também a prisão de Eunice Paiva e de uma filha do casal (deixando três filhos abandonados em casa).
Que vergonha viver num país onde o governo, que deveria governar para todos e proteger cidadãos e cidadãs, matou, torturou e destruiu famílias. Que vergonha viver num país em que operários, estudantes, jornalistas, políticos, artistas e professores foram torturados, exilados, presos, mortos apenas por lutar pelo óbvio, pelo que deveria ser um país democrático.
A tristeza é maior ainda. Vivemos num país onde, em pleno século XXI, um governo eleito democraticamente trama um golpe por ter perdido a eleição, e ainda, dentro de sua corja, planeja matar políticos e juízes opositores.
Mas não é maior ainda por conta dessa gente espúria. É gigante porque sei que há muitos que apoiam e concordam. Alimentados por um ódio cego, e por uma ignorância e burrice assustadoras, essa gente acredita em fantasma do comunismo, ditadura do judiciário e ideologia de gênero, dentre outras imbecilidades.
O final de semana teve uma curva dramática feliz. Começou com um filme, vendo a prisão de uma vítima do golpe militar, e terminou com a real prisão de um general que seria algoz de outro golpe.
Em todos os países da América do Sul em que houve golpes militares, os mesmos pagaram por seus crimes de Estado. Menos no Brasil. Aqui, a tal anistia ampla e irrestrita foi uma maneira de, anistiando cidadãos que apenas discordavam e lutavam contra um estado de exceção, anistiar também os criminosos do governo da ditadura militar.
“Não tem como não fazer nada”, diz um personagem do filme a Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, justificando as ações de seu marido. Na dramaturgia, temos uma expressão: reconhecimento. É um momento importante da peça, em que a personagem se apercebe de algo que faz ela mudar seu rumo.
Discretamente, ali algo muda, somando-se a tudo que ela viveu na prisão, e frente às injustiças contra seu marido. Ao se mudar para São Paulo, Eunice muda. Forma-se em direito, e passa a advogar a favor das causas indígenas, contra a grilagem e a violência tradicional aos nossos povos originários.
Não tem como não fazer nada, pensam os que querem um país menos desigual, mais democrático e justo. Seja lutando contra grandes ou pequenas opressões de ordem pública. Seja ajudando foragidos, presos e exilados injustamente por um país. Seja advogando pelas causas dos povos originários. Ou seja no combate a alguém que fala durante uma sessão de cinema.
Imagino que a maioria absoluta que me lê pode estar pensando na gigantesca, descabida e absurda desproporção das situações que citei acima. Mas é na microfísica do poder que se germina um fascista. É nas pequenas ações antidemocráticas que se solidifica a ideia de que a sociedade tem que se adequar ao que consideramos melhor para nós.
Seja num golpe de estado ou num som alto na praia, é importante que essa gente saiba que ainda estamos aqui. Sob os mesmos direitos, deveres e espaços. E os que estão aqui, ao lado dos que lutam diariamente, não vão se calar. E são imprescindíveis, como diria Bertolt Brecht.