Redenção, arrogância e a luta contra o sistema
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Gabriel Galo
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Nasciam os anos 1970 em Salvador. Meu pai, garoto caminhando para os seus dois dígitos de idade, se picava muitas vezes sozinho, bandeira na mão, do Santo Antônio Além do Carmo rumo à Velha Fonte. Em breve, um brioso jogo do campeonato baiano.
Até o fim da década de 1960, os times que não Bahia e Vitória faziam bonito. Galícia, Leônico e Fluminense eram forças que jogavam de igual pra igual. Ir à Fonte, portanto, era garantia de espetáculo.
Mas os anos 1970 foram especialmente duros para o Vitória. À exceção de 1972, quando meu pai, 9 anos de inocência, se apaixonou de vez pelo rubro-negro de Mário Sérgio, Osni e André Catimba, e à campanha do Brasileiro de 1974, era tarefa hercúlea manter-se fiel ao manto. Alheio, à espera de uma mágica com a canhota do Vesgo, ou a uma arrancada à linha de fundo do diminuto e arisco ponta, voltava muitas vezes para casa com a decepção estampada em seu rosto, arrastando a bandeira, segurando-a pelo pano, enquanto o mastro riscava o asfalto.
A fé, entretanto, inabalável. Criança tem o dom da esperança. E uma derrota para o Redenção o fazia crer que um dia, seria a vez da redenção rubro-negra. Em seus anos de formação, meu pai viu o Bahia se solidificar como grande força do futebol local, mas não deu bola para os donos dela. Ainda mais rubro-negro ficou, como se esta paixão fosse mais uma vertente da sua luta contra o poder estabelecido. Ser do contra é coisa de espírito.
Eram outros tempos, pois.
Nestes dias de pandemia e estádios vazios, pego-me pensando no meu pai, que nos deixou há pouco mais de 4 anos, enquanto moleque a visitar a Velha Fonte. Penso na relação que ele-criança teria com o futebol nos dias de hoje. A que paixão se entregaria? Continuaria rubro-negro?
Sucumbo a um mais que decepcionante “não”.
Não, o infante torcedor não embicaria à Fonte porque espetáculo sequer haveria. O pretenso futebol que tanto Bahia quanto Vitória praticam jamais seria capaz de fazer brilhar os olhos do guri. Em campo, não tem quem assuma a alcunha de Mário Sérgio, Osni ou Catimba. Em vez do brio de antanho, vê-se jogador de empresário qualquer, com tatuagens mil, postagens em redes sociais, muita marra e nenhuma habilidade.
Nem ao menos nêmesis teria. Não há também Bahia à altura, que embora milite numa divisão acima, pouco mais tem para mostrar.
A bem da verdade, pego-me atrelado ao ser-se do contra como vertente de formação do caráter de meu pai. Aquele que cresceu odiando argumentos de autoridade – outra herança que me fez aceitar, além do compartilhado fervor vermelho-e-preto – certamente se debandaria por outro lado. O futebol haveria de achar brecha para instalar-se em seu peito. Mas para que fosse rubro-negro, teria sua alma que modificar-se em sua essência.
Diante da arrogância suprema dos líderes de cada nação – um pela valorosa moral abraçada, outro pela inexplicável incivilidade autoritária de quem se acha o único conhecedor do futebol – vestiria, talvez, grená, e bateria ponto em Pituaçu torcendo pelo Jacuipense na Série C.
Assim, não veria mal nenhum em regressar com sua bandeira arriada em uma eventual jornada não muito feliz pela terceirona. Teria, no ato rebelde de palpitação improvável, bem ao seu jeito inocente de menino-sem-noção, preenchida a necessidade de voltar-se contra o sistema. Acharia, ali, sua sonhada e inconsciente redenção.
Gabriel Galo é escritor