Wakanda negou visto a Rafaela Fleur, mas acho que ela não pediu
Ninguém é obrigado a passar a vida toda com a mesma cara, apenas porque alguém vai achar determinada variação errada
Rafaela Fleur é uma mulher baiana e mestiça que, como tantas outras mulheres baianas e mestiças, pode ser percebida "mais pra branca" ou "mais pra negra", a depender de fatores cosméticos, sociais e geográficos. Todos conhecemos pessoas assim, não preciso explicar. Não, isso não é um "defeito", mas uma característica interessante de muitas pessoas mestiças que vivem ali, numa região de fronteira étnica e de fenótipo. Eu, que também sou uma mulher baiana e mestiça, gosto disso, acho massa.
Assim como tantas outras mulheres mestiças - que podem ser percebidas "mais pra brancas" ou "mais pra negras", a depender de fatores cosméticos, sociais e geográficos - Rafaela se movimentou, "voluntariamente", em direção ao "mais pra branca", durante muitos anos. Pelo menos, é o que aparece nas redes sociais de Rafaela. Ela é jornalista, mas também modelo, então são comuns as fotos montadas, posadas e com filtros que aproximam fotografias do "padrão de beleza" que ela quer alcançar. Normal.
Eu não conheço os gostos pessoais de Rafaela, mas coloquei aspas em "voluntariamente" porque, como sabemos, o racismo que também nos estrutura (infelizmente, a todos, vale lembrar) fez com que características que nos aproximam do "mais pra negra", ao longo da história fossem chamadas de "feias" e percebidas como algo a ser "consertado". Assim, sem uma reflexão mais aprofundada, a gente fica até sem saber direito o que é livre escolha e o que foi comprado como "obrigatoriedade".
Por exemplo, já estive em cadeiras de cabeleireiros que me disseram só conseguir cortar os meus cabelos (3B/3A) se, antes, eu alisasse. Já topei alisar e achei bonito, na época. Mais tarde, já topei só "alinhar" e me chateei porque o "alinhamento" desfez meus cachos. Hoje, não aliso nem "alinho" mais, não frequento salão de beleza e também gosto assim como está: natural, sem nem pintar. De vez em quando, raspo a cabeça e, sem os cachos, pareço "mais pra branca", mas só até pegar uma praia.
Frequento o perfil de Rafaela e acompanhei, há um tempo, uma comuníssima transição capilar. Ela parou de alisar, assim como muitas mulheres, nos últimos tempos. Os fios devem ser originalmente castanhos, mas ela meteu um louro nos cachos e ficou ótimo. Em minha opinião, claro. O contraste com a pele cor de mel me faz lembrar uma infinidade de amigos e amigas que, na minha adolescência, viviam na praia: aqueles cabelos cacheados/crespos alourados (às vezes, naturais e outras com a ajuda da parafina ou de água oxigenada) e a pele bem bronzeada.
Tá "mais pra negra" do que pra branca, Rafaela, neste momento, a depender do olhar. Em minha cabeça, que não gosta de rotular humanos, apenas vivendo uma de suas possibilidades. Mas, nesta quinta-feira, fui dormir tarde acompanhando o linchamento virtual dela, lendo cada frase de ataque e a análise detalhada do corpo dessa mulher, que, ao longo da vida, já variou bastante e teve muitas caras. A acusação é de que Rafaela está "se fingindo de negra pra tomar o lugar de mulheres pretas". Até "black face" citaram. Achei sem noção e bizarro.
Porém, antes de "achar" qualquer coisa, tive o cuidado de fuçar o perfil de Rafaela todinho, buscando algum sinal do "crime" do qual vem sendo acusada. Pois em nenhum lugar a vi se autointitulando negra. Também não vi qualquer pedido pra ser destaque no Ilê Ayê, muito menos denúncia de algum racismo sofrido ou oferecimento para ser "consultora de diversidade" (ainda que diversidade seja um conceito de amplitude onde todo mundo cabe). Rafaela só está mesmo vivendo a vida dela, sendo Rafaela, em uma das suas legítimas possibilidades de imagem. De forma que não entendi qual é o lugar que ela quer tomar. Wakanda negou visto a Rafaela, mas eu acho que ela não pediu, esse é o caso.
Quem, como eu, já viveu mais um pouquinho, vai lembrar que, há poucas décadas, pessoas mestiças, no Brasil, eram cobradas a "honrar a raiz africana", assumir a "negritude", mesmo que o fenótipo não "ajudasse". Se tivesse cabelo crespo, por exemplo, já era pra assumir "negritude". Buscar um antepassado africano, frequentar eventos e rituais do "povo preto", tudo isso era "se conectar" e "dar visibilidade à causa". A pessoa "se descobrir negra" era uma coisa que se aplaudia, mesmo que, visualmente, houvesse contradição. Todo mundo achava moderno e engajado. Agora, é exatamente o contrário.
Nos últimos tempos, qualquer suposta aproximação de um território de "negritude" fortemente demarcado é rebatida com violência. Os julgamentos se sucedem e são públicos. Não, eu não estou cega para os ridículos e abusos, inclusive em cotas nas universidades. É evidente que há mestiços oportunistas, mas, como sabemos, oportunistas vestem peles de todas as tonalidades. Por outro lado, a cor da pele não é condenação ou salvação de caráter. Negro "puro" e branco "puro" oportunista também não falta. Todos conhecemos vários. De modo que quem quiser ser marionete no meio desse samba, que vá. Eu não tenho mais idade.
O que eu quero dizer, aqui, hoje, é que - independente de qualquer militância, proibição ou obrigatoriedade - mestiços existem e são maioria no Brasil. Também por esse motivo, o passaporte brasileiro é dos mais roubados, exatamente porque não há um "brasileiro padrão". Temos muitas caras. E mais: diferente do que tentam alguns discursos, a mestiços não falta identidade. As possibilidades de diferentes percepções fenotípicas, inclusive, nos constituem. Mestiços são "isso e aquilo" e não "nem isso nem aquilo". Somos soma e multiplicação de migrações várias.
O corpo que eu habito traz traços europeus, africanos e dos indígenas (ou "povos originários", né?) que europeus e africanos aqui encontraram. A despeito do sangue derramado nessa história (e é óbvio que há reparações necessárias), o tipo de humano que surgiu é novo e cheio da mais inaugural e profunda brasilidade. Estamos aqui e muitos de nós foram contemplados com fenótipos "fluidos", com muitas possibilidades de construção de imagem. Ninguém é obrigado a passar a vida toda com a mesma cara, apenas porque alguém vai achar determinada variação errada. Nenhum humano merece se submeter a tamanha mediocridade. Brasileiros, gente. Aqui é Brasil. Não estamos na Europa nem na África. Muito menos em Wakanda, aquele filme onde só existem negros e todo o poder é deles. Saiba.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo