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Você conhece a lei que protege pedófilos e só existe no Brasil?


 

O que a gente vê é criança sendo arrancada dos braços da mãe pra cumprir regimes de convivência com o agressor

Publicado em 31/08/2024 às 05:00:00

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Há assuntos sobre os quais todo mundo deveria se aprofundar. Sobretudo quando se é mulher. Mais ainda quando se é mãe. Especialmente, quando se vive um processo judicial em que a outra parte também é conhecida como “genitor” dos seus filhos. É que, como todos sabemos, desde 2010, basta uma mãe acusar um pai de qualquer violência - e/ou filhos rejeitarem os próprios pais - para advogados e juízes passarem a “diagnosticar”, em crianças e adolescentes, a tal “síndrome da alienação parental”. Mas o que, exatamente, significa isso?

Uma coisa estranhíssima. Primeiro, que, para ser diagnosticada, uma síndrome precisa existir e essa daí não tem CID, ou seja, não existe. Depois, esse negócio de advogado e juiz dar diagnóstico sempre me pareceu, no mínimo, exercício ilegal da profissão uma vez que síndromes psíquicas só podem ser diagnosticadas por pessoas que estudam saúde mental, e não por quem se formou apenas em direito. Essas duas esquisitices já seriam suficientes pra ativar a minha síndrome de vira-lata (que também não tem CID) me fazendo pensar “só no Brasil”. No que eu não estaria errada, observe.

Fiquei besta ao saber, recentemente, que a lei que abriu espaço para esse tipo de atuação só existe por aqui mesmo. Em nenhum outro lugar do planeta Terra o judiciário comeu o reggae de Richard Gardner, o tal médico controverso e de carreira errática que inspirou a Lei da Alienação Parental. Foi lá nos Estados Unidos, por volta de 1980, que o guru surgiu e começou essa agonia.

Há quem diga que Gardner era psiquiatra. Outras pessoas afirmam que ele fez só medicina, sem a especialização. Fato é que o teórico da tal lei atuava como perito judicial. Parece que, especificamente, defendendo homens acusados de pedofilia. Depois, ele próprio foi acusado de pedofilia e abuso infantil. Com o FBI na cola dele, acabou se matando, em casa, a facadas, aos 72 anos.

(Dizem que, inclusive, esfaqueou o próprio pênis, o que seria bem simbólico, mas não sei.)

Antes disso, editou meia dúzia de livros na gráfica dele mesmo. São livros sem prefácio, justamente porque ele não tinha o hábito de mostrar aos seus pares o que escrevia. Faz sentido. O teórico da lei brasileira “criada pra proteger crianças e adolescentes” diz coisas do tipo “as atividades sexuais entre adultos e crianças fazem parte do repertório natural da sexualidade humana”. Também afirma que “a pedofilia é benéfica à criança”. Está tudo escrito nos livros que são raros, mas você consegue baixar os pdfs, se quiser ler.

Gardner ainda aconselha que o pai estuprador permaneça convivendo com a prole (olha!) e sugere que as mães de crianças estupradas se masturbem com frequência. Isso porque, na opinião de lá ele, a masturbação faria com que elas ficassem mais “sexualizadas” para os maridos que, assim, teriam sexo suficiente com as esposas e não estuprariam os filhos e filhas. Tá bom pra você? Existem muitos outros detalhes sobre os textos e o autor da teoria que está na justificativa da Lei da Alienação Parental. Depois você pesquisa direitinho e vai ver que a onda dele é proteger os criminosos, dizer que as mães são loucas e tratar crianças/adolescentes como objetos a serviço da perversão.

(Claro, há quem tente dissociar Gardner da lei, mas você também vai ver que mesmo uma busca rápida no Google já prova que isso é impossível.)

(A justificativa do projeto que originou a lei traz o trecho de um artigo que cita Gardner e afirma que o fim do casamento pode gerar nas mães uma “tendência vingativa” que resultaria em falsas acusações contra os pais. É gaslighting real oficial e a gente conhece esse papo mais do que eu gostaria.)

Fato é que, há anos, tem muita gente tentando revogar essa lei e talvez seja importante você entender como ela tem sido aplicada, quem quer revogar e por quais motivos. Isso porque é comum que a expressão “alienação parental” apareça nas conversas sobre imbróglios familiares e é feio a gente falar sem entender a serviço de quem. Sobretudo, quando o assunto é espinhoso, delicado, gravíssimo e a sua opinião pode condenar pessoas ou salvar vidas, a depender.

Sei que pensar dá trabalho e que, num primeiro olhar, parece até absurdo que alguém seja contra uma lei que “protege” crianças das maledicências de adultos, que pune o pai ou a mãe que “fala mal do outro”, que garante o convívio da prole com as duas partes, igualmente. Só que, é como se diz: “na prática, a teoria é outra”.  Primeiro que, como todos os números mostram, os principais agressores de crianças/adolescentes (e das mães) são os pais. Evidentemente, a mãe é quem denuncia. Então, a Lei da Alienação Parental pune mães. O contrário você já viu?

Ou seja, essa lei vem sendo utilíssima para transformar homens agressores (e negligentes e manipuladores) em vítimas. Principalmente, claro, os pedófilos, ou seja, aqueles que inspiraram a teoria. A pedofilia é um crime que gera poucas provas materiais, que demanda investigação delicada e depende da ação de adultos próximos para ser punido. No dia a dia das varas de família, a lei vem sendo usada justamente para descredibilizar essa denúncia porque se a mãe (que é o adulto mais próximo da criança) denuncia, é pela tal “tendência vingativa” e vira ré no processo, por denunciar o criminoso. Veja que onda. Assim, o crime fica perfeitinho.

Para completar a perfeição (o guru pensou em tudo!), a lei desqualifica os relatos das próprias crianças e adolescentes sobre violências sofridas. É que Gardner também garante – sem qualquer base científica - que memórias adolescentes e infantis podem ser plantadas pelas mães “vingativas” dentro das cabeças dos filhos. Com tudo isso, no fim das contas, o que a gente vê é criança sendo arrancada, aos prantos, dos braços da mãe pra cumprir inacreditáveis regimes de guarda e convivência com o próprio agressor. A mãe que acusa tá “tentando se vingar”, o que a criança diz “é mentira”. Assim, o criminoso segue tranquilíssimo. É uma rasteira no bom senso, uma aberração jurídica brasileira.

“Mas existem acusações falsas que precisam ser punidas”, você está pensando aí. Claro, elas são uma minoria, mas existem porque a humanidade produz todo tipo de absurdo. Mas no mundo inteiro tratam essa questão dentro de outras leis de proteção às crianças. Há dispositivos legais que permitem atuações menos ridículas do que o que temos aqui com a invenção de uma “síndrome” causada pela mãe “vingativa'. É a minha opinião? É. Mas não só minha.

A “síndrome da alienação parental” nunca foi aceita pela Associação Americana de Psiquiatria. Chegou a ser reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que voltou atrás e a retirou da CID (Classificação Internacional de Doenças) em 2020. Ou seja: hoje, a Lei da Alienação Parental é apenas um instrumento legal a serviço da violência e baseado na fantasia perversa de um pseudo psiquiatra incentivador da pedofilia. Sim, só no Brasil.

É por isso que infinitos profissionais do direito, da psicologia e da pedagogia pedem a revogação dessa lei. É por esse motivo que tantas associações e comissões pedem o mesmo. É por isso que a Lei da Alienação Parental tem sido objeto de intenso debate. É também por esse motivo que a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de um grupo de especialistas, fez recomendação ao Brasil em 2023 para que a lei seja revogada. É por isso que hoje escrevi sobre isso. Agora, você sabe um pouco mais do que se trata e decide como agir. Agora você já conhece a lei que protege pedófilos e só existe por aqui. Sugiro que cheque tudo que escrevi e depois se posicione porque, com certeza, isso também tem a ver com você.

(Este texto foi inspirado e baseado no debate exibido pelo YouTube, no último dia 27, no Canal Iaras e Pagus, dentro do programa Medicina e Democracia, com o tema “A polêmica Lei da Alienação Parental”. O debate tem como convidadas Teresa Melloni (psicóloga e psicanalista), Ana Maria Lencarelli (psicóloga e psicanalista), Sibele Lemos (educadora e psicopedagoga) e mediação de Alice Daflon, que é médica e advogada.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo