Pra criar pitbull é preciso ter dinheiro, informação e civilidade
Há pitbulls criados com muita responsabilidade e afeto, e isso inclui compreender e minimizar o perigo da raça
Não posso dizer que ignoro completamente a lógica de pessoas que procuram ser donas de animais potencialmente ‘perigosos’ aos olhos da maior parte da coletividade. Assustar os outros, aparentar o que chamam de ‘coragem’... isso tudo pode ser muito sedutor em momentos – ou personalidades – de fragilidade retumbante. Ao ‘dominar’ e exibir o bicho ‘perigoso’, o humano todo desgraçado da cabeça se consola com a fantasia de que os outros o percebem ‘maior’ e ‘valente’. Aí, como autoestima e saúde mental em dia é um negócio cada vez mais raro, criar ‘pitbull’, por exemplo, não saiu de moda nunca mais.
Há pelo menos quatro tipos de cachorros dentro da definição ‘pitbull’, pra entender tem que estudar. Isso, fora todos os vira-latas assemelhados que você vê aí passando pela sua rua, principalmente se morar no interior. Vários vagando soltos. Outros tantos conduzidos de maneira precária. Muitas vezes, esquálidos. Mas a genética é um negócio incrível e observe: se o vira-lata magrelão tiver quantidade considerável do sangue da raça que foi criada especialmente para atacar, o miserávi, provavelmente, tem aquela mordida matadora característica que trava e não larga de jeito nenhum.
O assunto aqui é o problema dos pitbulls desgovernados. Conhecido e interdisciplinar, veja se eu não tenho razão: há a questão psicológica dos ‘proprietários’, há a biologia que explica o perigo da raça (mesmo dos pitbulls da shopee) e há nossas mazelas sociais acabando de lenhar com tudo. Um dos aspectos é que, como você sabe, a carestia está demais e o povo não tem dinheiro pra comer direito que dirá pra alimentar um bicho desses do jeito que deve ser alimentado. Aí, se eu (que sou um doce e não mordo ninguém) posso ficar violenta com fome, imagine eles. O segundo problema social que pesa é a falta de educação e aí complica ainda mais.
Na maioria das vezes, o que vemos é que donos de pitbulls (e genéricos) não conseguem sequer cumprir o protocolo básico para o porte - e potencial perigo - do animal. Um pacote simples e importantíssimo composto minimamente por adestramento adequado (sem violência, mas eles não estão preparados pra esse papo), guia, coleira (jamais peitoral que estimula o cachorro a puxar) e focinheira. Já viu passar algum assim em sua rua? Nem eu. Porque a ignorância é muita e, talvez, se equipare apenas com o desejo de assustar estranhos. Também com a falta de respeito ao próximo (e ao espaço público), que é um dos sintomas do nosso nível insuficiente de civilidade. Isso não é apenas feio, mas também pode matar. E mata.
Você viu que, na sexta passada, a escritora Roseana Murray teve um braço e uma orelha arrancados por três pitbulls, em Saquarema, Rio de Janeiro? Os cachorros comeram o braço dela. Comeram! Uma cena horripilante protagonizada por animais violentíssimos que eram de vizinhos e estavam soltos na rua, claro. Porque abrir o portão pra deixar cachorro fazer cocô e xixi fora de casa também é um hábito comum. As informações são de que a vítima está fora de perigo, mas imagine o trauma, a dor e o processo de reabilitação que começa assim que ela tiver alta. Lamento e sinto raiva. Os donos dos bichos estão na mais plena liberdade.
Nesta quarta, aqui em Salvador, outro animal da mesma ‘raça’ partiu pra cima de um pobre vira-lata caramelo que fazia um passeio matinal todo certo, na paz, com coleira e guia, ali pela orla da Barra, conduzido pela dona, que deve amar o bichinho mais do que eu amo muito parente. Pelo menos, é o que achei assistindo ao vídeo que mostra ela enfrentando o pitbull dos infernos pra salvar ‘Garoto’, que saiu do ataque todo estropiado, mas tá vivo e deve ficar bem. Eu não teria aquela coragem, sinceramente. Parabéns.
São apenas dois casos, os mais recentes de que tenho notícias. De gravidades diferentes, óbvio. Mas ambos da categoria ‘ataque de pitbulls’ e há quem repita que ‘não é a raça, é o jeito que cria’. Sim, ‘o jeito que cria’ é parte do problema, mas eu nunca vi um pincher, por mais malcriado que seja, matar ninguém. Ainda que muitos deles pareçam ter bastante vontade, não há estrutura física que permita um ataque mortal. Sei que há pitbulls criados com muita responsabilidade e afeto, e isso inclui compreender e minimizar o perigo da raça. Mas não é a regra, não é a maioria. Também sei que ‘nem todo pitbull’ causa acidentes, mas é sempre um deles, percebe? Pois é.
Tanto que a raça é banida ou tem restrições em 24 países. Inclusive no Brasil, olha que interessante. Por aqui, eles - assim como outras raças potencialmente perigosas - são proibidos de circular em via pública sem focinheira. No caso dos pitbulls, ainda devem ser castrados porque a ideia é acabar com a raça sem matar ou cometer crueldade com nenhum. Isso, desde 2012. Se a lei fosse cumprida, já teríamos algum resultado. A intenção, inclusive, é proteger não só quem tem o direito de andar nas ruas sem medo do cachorro alheio - também correm perigo os tutores dos animais. Volta e meia, morre alguém que ‘cuidava do pitbull com todo amor’ e eu até me esforço pra acreditar. Vá lá que seja. A questão é que a gente não tá conseguindo manter estável sequer o próprio humor, que dirá o de um animal irracional.
Pra criar pitbull - e outras raças de potencial violento - é preciso ter dinheiro, informação e muita civilidade. Três artigos que, você há de convir, nos faltam. Alimentar corretamente, adestrar com bons profissionais, socializar o animal da maneira correta. Mesmo com essas providências, contar com os percalços da genética de um cachorro criado para atacar. Tudo isso demanda intensa dedicação por anos a fio, uma disponibilidade que muita gente não tem nem pra filho, que dirá. Na falta desse conjunto de ações, dessa entrega, dessa possibilidade, o mínimo: bora levar a lei a sério e cobrar fiscalização das autoridades para que, pelo menos, os animais usem focinheiras em lugares públicos e sejam castrados. E se você, como eu, já cansou de certos desafios, bora adotar gatos.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo