PEC da escala 6X1 deveria beneficiar só mulheres
Precisamos de mais tempo “livre” do que os homens porque todas temos um segundo “emprego”
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Flavia Azevedo
flaviaazevedo.flcp@redebahia.com.br
Brasil pensando em qualidade de vida, discutindo redução de jornada de trabalho para o conjunto que se chama “trabalhadores”. Que beleza! Tô achando interessante, mas (desculpe o transtorno) trago aqui mais um “senta lá, Cláudia”. Observe que, na PEC da escala 6X1, homens e mulheres não podem estar no mesmo saco.
Porque uma coisa é o que eu gostaria: a igualdade entre os gêneros em tudo que há. Em relação a trabalho, isso significaria todo mundo no mercado, com remuneração e turnos equiparados, mas também dividindo outras demandas de igual pra igual. Aí, sim, eu toparia estar lado a lado. Só que não é o caso. Há especificidades.
Conforme sabemos, não há equidade na labuta. Nem no expediente nem depois dele, dentro das famílias, nas relações pessoais. Não dá pra disfarçar as evidências da disparidade de experiências que ainda vivemos e que precisamos considerar antes de tomar decisões que impactam a coletividade.
Então, se não for pra conversar direito, levando em conta a realidade dos fatos, por mim, nem precisa discutir negócio de escala. Tanto faz. Em resumo, não vou mexer um dedo pra homem ganhar mais tempo esparramado no sofá enquanto mulher cuida sozinha de doente, criança e faxina. Como dizia Suassuna, “a mim, vocês não enganam mais”.
Desde que entramos no mercado profissional e passamos a dividir (ou assumir) as contas da casa, esperamos que eles retribuam dividindo conosco a lida da vida doméstica que sempre disseram ser “mais fácil”. O que até aconteceu com um ou outro, eu sei, é verdade. Só que já passou muito tempo pra ser apenas “um ou outro” aqui e acolá.
A falta de adesão em massa mostra que eles não estão com vontade. Escolhem trabalhar só na rua, acham “chato” cuidar de pessoas e "preferem não opinar". Então, tudo bem. Vamos por outro caminho. O momento é de pedir reparação e explico: precisamos de mais tempo “livre” do que os homens porque todas nós temos um segundo “emprego” e esse é um argumento legítimo para que apenas a escala de trabalho de mulheres seja alterada.
Antes, vamos lembrar que ainda ganhamos menos do que eles em cargos e funções similares e nada sobre mercado de trabalho é mais importante do que corrigir essa aberração. Isso é questão de ordem, começo de papo. Depois, precisamos entender que trabalho não significa só o que se faz na firma. É muito mais do que isso e o “mais”, espremido em nossas horas “vagas”, tem resultado até em Burnout. Não estou exagerando em nada.
Veja, de acordo com o IBGE, mesmo empregadas e sustentando 51% dos lares na Bahia, mulheres ainda dedicam 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas . Realizou? É um dia de trabalho com hora extra. É nosso domingo, por exemplo. Ou, durante a semana, quase todo o tempo livre que passamos acordadas. Um escândalo, um dado que só pela nossa baixa autoestima ainda deixamos passar.
Eu sei, citar o IBGE é até desnecessário. Nem precisa de instituto de pesquisa pra gente saber que essa é a verdade. Basta olhar ao redor com alguma honestidade. Por exemplo, na sua família, mulheres e homens trabalham fora, não é? Claro e isso não é novidade. Então, chega todo mundo cansado do mesmo jeito em casa, querendo relaxar e ficar em paz. Pois bem. Mesmo assim, quem vai tomar pé do que aconteceu na vida das crianças e preparar o jantar? E a faxina no dia de folga, quem faz?
Pense aí e me diga também quem visita tia Marieta na casa de repouso, compra o pacote de fraldas para o bebê da diarista e sabe tudo que tem na geladeira? Quem acompanha os doentes e cuida das paridas com seus recém-nascidos que não param de chorar? Quem é a “chata” da casa porque vive pedindo que não baguncem o que acabou de organizar? Quem recolhe as toalhas molhadas? Quem leva o cachorro ao veterinário?
Se, no seu caso, as tarefas estão bem divididas ou o protagonismo é masculino, tenha sinceridade e assuma: você sabe que é exceção. Coletivamente, são as mulheres que cuidam das pessoas e do ambiente em que vivem as pessoas. No mínimo, assumem a coordenação. Na maioria das vezes, quando “não estão trabalhando” e sem qualquer remuneração.
Só que isso tudo é trabalho como qualquer outro. Executado por profissionais, custaria rios de dinheiro que nunca irão nos pagar. Porque ainda trabalhamos de graça, movidas pela ideia de que “mulher é que entende dessas coisas”. Também acreditando que “amar é servir”, mas só quando quem ama é a mulher porque amor de homem basta declarar e mandar flor pra se “provar”.
(Também porque, se a gente não fizer, a casa vira um chiqueiro, os doentes morrem à míngua e ninguém sabe o que seria das crianças.)
Então, tá. Alguém tem que cuidar do que mais importa. Se ainda estamos sozinhas nisso, vamos começar a botar preço no trabalho sem o qual ninguém vive porque todo mundo precisa comer, morar e ser amparado. O certo seria sermos pagas em dinheiro, inclusive pelo Estado. Por ora, topo ganhar em tempo e aceito dois dias de folga a mais. Só pra nós porque temos necessidades específicas e agora também me deu uma vontade incontrolável de entender o lado dos empresários.
Não acho que, de início, todos os trabalhadores precisam ser beneficiados. O baque na economia e tal, essa parte que nem sei defender, mas pode ser verdade. O que sei é que se saírem só as mulheres para a escala 4x3 (sem prejuízo de salário!) facilitamos as negociações, temos mais chance de aprovar a PEC e teremos a justiça de uma reparação que já chega atrasada.
Aí é o seguinte: se eles também quiserem o benefício, que corram atrás. Porque em dois minutos de papo eu provo que três dias “livres” na vida de qualquer mulher, no fim, resultam em um, de tanta coisa – de interesse coletivo - que temos pra providenciar. Então, é o que precisamos de fato. Por outro lado, um dia livre por semana é mais do que suficiente pra quem só cuida de si mesmo e ainda muito mal. Como você sabe, entre os nossos afazeres, frequentemente, está até marcar para os donzelos o bendito exame de próstata anual.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo