O caso da FACOM, Paulo Freire e um olhar bem pessoal
Quem tem criança em casa sabe que depois de extrema excitação – ainda que muito feliz - acontece uma briga
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Flavia Azevedo
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Não precisa ter doutorado, pós-doc nem mesmo mestrado para escutar áudios que circulam pelo Whatsapp. Muito menos para - depois de escutar o áudio de mais de uma hora – entender o que aconteceu na aula da professora Jan Alyne, na FACOM (Faculdade de Comunicação da UFBA), nesta semana. Eu escutei duas vezes e tenho a minha opinião. No entanto, aqui, comerei pelas beiradas. Justamente por haver uma fila de especialistas – muito mais embasados do que eu - aptos a destrinchar o fato. Então, que eles (elas e/ou elos) se ocupem do ocorrido no ambiente que dominam. Apenas observo e me inspiro pra falar, assim, de forma geral.
Quem tem criança em casa sabe que depois de extrema excitação – ainda que muito feliz - acontece uma briga. “É melhor parar e respirar, pra não dar confusão”, “sentem aqui pra beber água”, “para um pouquinho, gente” e frases de sentido parecido foram escutadas, por mim, durante toda a minha infância. Repeti essas frases durante a infância do meu filho. Internalizei e digo as mesmas frases, pra mim mesma, até hoje, já bem avançada na idade adulta. Funciona bem.
Foi parando para respirar e beber água que, na minha escalada pessoal feminista, parei antes de odiar todos os homens e achar que toda mulher é bacana. Foi por pouco, mas consegui direcionar meu ódio (não tenho outra palavra) a estruturas e comportamentos machistas (individuais ou coletivos), mas não a todo e qualquer indivíduo do gênero masculino. Também a ser aliada do coletivo feminino e não de qualquer indivíduo do gênero feminino, em qualquer situação. Também erramos. Por exemplo.
Felizmente, não me excitei a ponto de me sentir deusa e soberana, sagrada e dona de toda a razão. Parei antes de me achar superior a qualquer homem, apenas por ser mulher. Não ergui um altar para o meu útero nem derramei minha menstruação pelos assentos dos transportes públicos, justamente porque parei para respirar. Não convivo apenas com mulheres e não educo meu filho dizendo que ser homem cis branco é uma condenação à mediocridade. Porque não é, nunca foi nem será. Formação baseada em equidade salva e há muitas experiências no mundo que podem provar.
Estou comparando os movimentos sociais de “minorias” ao comportamento infantil da excitação desmedida que, no fim, dá em merda? Não estou e não me interprete mal. Mas se quiser, pode. Não me importo e informo que isso reafirmaria, exatamente, o meu argumento. Com honestidade, você vai perceber que o quero dizer é que no bojo dos nossos levantes, há convites para excessos e deturpações de toda ordem. O ponto é esse e está muito depois das legítimas motivações originais.
Também acho que fragilidades (emocionais e de caráter, principalmente) individuais encontram, na luta coletiva, uma infinidade de possibilidades de encaixes, nem sempre saudáveis. Às vezes, o coletivo não “cura” o indivíduo e o indivíduo ainda “adoece” pelo menos um pedacinho do coletivo. A manipulação da “luta” para adequação ao mote pessoal é bem comum. Nem sempre o vivente consegue separar uma coisa da outra. Às vezes, nem quer. Eu que o diga. Não é raro que, antes de respirar, eu não saiba, não queira saber e tenha raiva de quem sabe.
Isso, fora a desonestidade explícita que nos faz um convite a cada esquina. Declinar também é um desafio. Outro dia mesmo eu estava pensando sobre certo tipo de “denúncia”. Veja: se eu não sabia que acordar já no meio de uma “transa” era abusivo, será que quem cometeu isso, que agora percebo como abuso, sabia? Hoje, eu sei que está errado, que é – e sempre foi - violência. Mas, se eu mesma percebia como parte “aceitável” da relação, por que aquele outro indivíduo deveria perceber diferente, antecipando, em décadas, uma construção atual? O conceito de estupro foi – felizmente – se aperfeiçoando ao longo do tempo. Excelente. Mas não, eu não vou tratar como estupradores meus namorados dos anos 90.
(Evidente que, hoje, nenhum homem venha sequer tentar porque vai dar ruim. Pra ele, claro.)
Meu filho ter preguiça de trabalhos domésticos é uma expressão do machismo estrutural ou apenas a adolescência chegando? Eu também tinha preguiça, lembro. Lavava só as minhas calcinhas e sob muito protesto. Todas as reações negativas masculinas aos meus textos estão motivadas por machismo ou preciso separar violência de gênero do saudável contraditório? Fico com a segunda alternativa. Tenho o direito de falar mais e mais alto numa mesa de homens, por ser mulher - e isso é uma “reparação histórica” - ou devo esperar a minha vez em mesas de homens ou de mulheres? Não se trata, apenas, da mais básica educação doméstica? Enfim, são apenas exemplos.
Tudo meio polêmico, né? Também acho. Que espinhoso é pensar. Mas gosto e continuo. No plano individual, o fato de ser uma mulher cis me transforma, imediatamente, em vítima, em qualquer situação em que, do outro lado, esteja um homem cis? Não importa o que eu faça? O fato de ter a pele “clara” me faz agressora em qualquer eventual conflito com alguém de pele mais escura do que a minha? Fenótipo, orientação sexual e identidade de gênero são argumentos definitivos em todas as circunstâncias? Perigoso, hein?
Se chegamos a esse ponto, precisa “debrear” porque a mediocridade venceu outra vez. É o que eu acho. Necessário, mesmo, parar para respirar, diante da desmedida excitação. Ou, então, considerar que está tudo bem e, com isso, assumir a derrota profetizada por Paulo Freire em sua frase mais famosa e repetida ad nauseam. Se ainda há alguém que não conhece, tá aqui: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. Bom notar que não estão a salvo da relação “causa/consequência” nem as mais relevantes instituições de ensino superior.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo