Gisèle não tem vergonha de ter sido estuprada por 50 homens
Mesmo forçado, o ato sexual deixa algo de ‘culpa’ na mulher. E um estigma também.
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Flavia Azevedo
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Os crimes foram gravados pelo próprio Dominique, o homem que - por uma década - convidou “amigos” para que estuprassem a esposa dopada por ele. Registrar os estupros fazia parte da “fantasia”. Isso quer dizer que a justiça tem milhares de horas de imagens e sons nas quais Gisèle, inconsciente, é violada pelo marido e seus convidados.
Não teremos acesso a esse material porque assim decidiram os juízes. Acho bom. Suponho o conteúdo e como ele poderia ser usado nos porões da internet, por gente de sexualidade desgraçada que tem tesão em violência mesmo. Porém, Gisèle não se opõe à divulgação. Nem desse material nem de qualquer outro detalhe dos crimes. Ela tem consciência de que é uma vítima, ela sabe que não tem do que se envergonhar. Ela não tem culpa do ocorrido.
Você viu esse caso, tenho certeza. O da francesa, de 72 anos, chamada Gisèle Pelicot. Por esses dias, suspeitos estão sendo julgados, histórias estão surgindo e a imprensa responde a todas as perguntas que você possa fazer. Está tudo disponível. São nomes completos, fotos de todo mundo, depoimentos e detalhes riquíssimos para quem quiser ver, ler e ouvir.
Sugiro que você queira, inclusive. Esse é um bom exemplo de como crimes sexuais acontecem mais no ambiente do “improvável” do que naqueles onde aprendemos a ficar espertas. São mais cometidos por pessoas nas quais confiamos do que por desconhecidos.
(Há dados, pesquise.)
Nas matérias, você pode ficar sabendo, por exemplo, que Dominique - o marido estuprador - assume a culpa e diz que é “viciado em sexo”. O “vício”, segundo ele, foi causado por um abuso que ele mesmo sofreu, aos nove anos, quando teria sido vítima do enfermeiro de um hospital. Se for verdade, veja bem. Uma criança. Um hospital. Um enfermeiro.
Acabei de ler também que, entre os acusados de estuprarem Gisèle, há integrantes do exército francês e um bombeiro. Todos encontrados, por Dominique, em sites de conversas sobre sexo e fetiches. Quer dizer, está mais uma vez provado que não é raro encontrar em gente “acima de qualquer suspeita” um secretíssimo e perverso “lado B”.
Em outra matéria, eu soube que pelo menos um dos acusados é pai de três filhos e que a mulher dele desconfia de que também foi dopada e estuprada pelo próprio marido que teria seguido instruções de Dominique. Ainda li o relato da filha de Gisèle e Dominique que, provavelmente, também foi estuprada pelo pai. Igualmente desacordada, dopada por ele.
Tudo isso aconteceu no “primeiro mundo”, numa “família feliz”. Observe que na cama de um casal de idosos com dois filhos e três netos. Dentro de um casamento de CINQUENTA anos. Normalidade, confiança total, nenhuma suspeita e eu estaria muito surpresa se não tivesse uma cabeça “rodriguiana” que “vê maldade em tudo”, como já me disseram por aí.
Também poderia me pasmar mais um pouco se eu não soubesse que TODA MULHER que conheço já foi assediada, no mínimo. Muitas foram estupradas e várias pelo “presente de deus”. São coisas das quais, às vezes, a gente vai tomando consciência - e nomeando - ao longo da vida. Digo “a gente” porque, evidentemente, não escapei dessa estatística aí.
Quando escolhemos não falar é por vários motivos. Porque “ninguém acreditaria”, porque vamos "machucar pessoas", porque "não tenho provas". Mas, principalmente, porque a categoria "crimes sexuais" é a única na qual quem tem vergonha é a vítima. Ainda.
Porém, Gisèle não tem vergonha de ter sido estuprada por 50 homens e isso muda tudo, acredite. Que gigante, que foda, que linda! Vítimas de estupro têm direito ao anonimato, na França, mas ela não quis. Permitir que a opinião pública acompanhe cada passo do julgamento é generosidade, coragem e faz sentido como um belíssimo ato político.
Só porque Gisèle se expõe, podemos usar esse caso pra ampliar as discussões sobre violência sexual doméstica e principalmente sobre a vergonha - e o desejo de anonimato - das vítimas. Que nasce do nosso problema sexual coletivo. Quero dizer que, mesmo forçado, o ato sexual deixa algo de "culpa" na mulher. E um estigma também. No fim das contas, isso é o que nos faz buscar o sigilo que favorece o criminoso e vulnerabiliza a vítima.
(Pense: ninguém tem vergonha de denunciar um assalto, um golpe financeiro ou uma negligência médica, por exemplo.)
(Por quê?)
Estupradores podem até saber, racionalmente, que estão cometendo algo errado, mas não se envergonham dos seus atos. Eles sabem que cumprem - em potência máxima - o papel masculino que acatamos em nossa estrutura social. Deslocar o crime sexual - inclusive no íntimo de todos eles - para o lugar de aberração e para a margem pode até parecer só assunto de polícia, mas não é tão simples assim.
Talvez, eu passe os próximos dias pensando em uma das coisas que a liberdade e a lucidez de Gisèle nos ensinam: em crimes sexuais, o lugar da vítima ainda precisa ser construído ou, pelo menos, melhor estruturado. Mais do que garantir sigilo, precisamos assegurar conforto na exposição. Além de segurança, conforto. Leia outra vez.
Até que a gente não queira mais se esconder. Até que contar essas histórias - e expor os criminosos - nos fortaleça, em vez de assustar. Até que vergonha e culpa não façam mais sentido pra nós, nesses casos. Até que toda mulher fale. Aí, sim, pode ser que eles passem a ter medo. Aí, talvez eles parem. Talvez.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo