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Em cartaz, o filme baiano que não precisa ser cinéfilo nem pesquisador pra gostar


 

Assim como Salvador, Receba! é duro e violento, mas não deixa a esculhambação de lado

  • Flavia Azevedo

Publicado em 26/10/2024 às 08:00:00
Receba!. Crédito: Divulgação

Fui à pré-estreia do filme Receba!, domingo passado, lá no Cine Glauber Rocha. Eu já tinha decidido frequentar mais o Glauber, que é um sonho materializado do querido Claudio Marques, idealizador e coordenador do espaço. Gosto de estar ali, inclusive porque lembro de quando ele me mostrou o projeto do cinema que planejava reformar e devolver à cidade. Pois está lá, reinaugurado desde 2008, na Praça Castro Alves, com relevância e significado incontestáveis.

(Cinemas de rua, por muitos motivos, são preciosidades. Além disso, nos poupam daquela cena de sair da sala depois da sessão noturna, vagar pelos corredores vazios dos shoppings com as lojas fechadas e chegar ao estacionamento fantasiando cena de terror. Tenho medo, não vou mentir. Estresse da poha. Podendo evitar...)

(Sem falar de quando o shopping fecha todas as portas, não avisa qual é a saída e você - que precisa de um táxi ou de um busão - fica rodando que nem barata tonta nos corredores de vitrines apagadas.)

Receba!, o filme ao qual assisti no domingo passado, também foi sonho de Rodrigo Luna, um outro amigo (e do amigo dele Pedro Perazzo), durante dez anos. Sem dinheiro sobrando, as coisas demoram um pouco mais, você sabe. No audiovisual, nem se fala. O que eu não sabia era que, nesse tempo, estavam fazendo o primeiro filme policial baiano do qual já ouvi falar.

Policial mesmo. Normal. Violento. Com bandido, morte, sangue e nenhuma grande metáfora a ser posteriormente discutida, exibindo erudição pras amizades, na mesa do bar e redes sociais. Só que, muito diferente dos policiais que conhecemos, tudo acontece em Salvador, com a cara da gente. O que achei sensacional.

(Procurei saber e, em priscas eras, já rolaram outros filmes policiais baianos, mas eu mesma não assisti a nenhum. Então Receba!, pra mim, segue primeirão.)

Percebeu que não pesquiso cinema? Pois é. Ainda por cima, esqueço nomes de filmes, diretores, atores e atrizes. Uma lástima. Mas escrevo sobre Receba! sem medo, porque a ideia é essa: não precisa ser cinéfilo, não precisa entender de cinema e ter mil referências acadêmicas, não precisa nem saber que Glauber Rocha (o cineasta) existiu pra entender tudo e se divertir. É entretenimento acessível, isso que também é função da arte.

O que não quer dizer que seja banal. Entre outras coisas, acho seríssimo que o filme apresente o resultado de várias militâncias importantes. Sem textão, sem discussão, sem tocar nos assuntos diretamente. As ações dos personagens, a escolha dos atores e atrizes, tudo navega quebrando os estereótipos que combatemos na teoria, mas ainda vemos se repetirem na prática, mais vezes do que seria aceitável.

(Inclusive nos trabalhos e posturas de muita gente que arrota engajamento, progressismo e intelectualidade.)

Em Receba!, a sensação é de que todo mundo entendeu o recado. Sem qualquer formalidade ou anúncio, o espectador, de repente, tá ali numa história na qual homens brancos também são bandidos (representados por Igor Epifânio e Vinícius Bustami), o corpo da personagem que faz filmes pornôs (representada por Edvania Carvalho) não é excessivamente sexualizado e a pessoa mais violenta de uma dupla de capangas pode ser a mulher branca (representada por Evelin Buchegger). Por exemplo. Quase “mensagem subliminar” e você sabe o quanto isso é eficaz.

A própria escolha de uma mulher negra para o papel principal de um filme que não discute racialidade nem feminismo já significa estar num mundo mais interessante. O bandido branco apanhar da polícia também é alguma coisa, enquanto não temos a polícia que não bate em ninguém. Atletas cheirando cocaína talvez mostrem tanto a realidade quanto a imagem de “saúde plena” que, conforme sabemos, nem sempre corresponde aos fatos. Gosto de tudo isso. Demais.

Quer ver outra coisa? É um filme policial, portanto tem morte, tem sangue e tal. Mas a violência não é explícita nem ocupa o lugar central. Não tem cabeça explodindo, barriga estourando, faca entrando. Tem tapa na cara e o resultado de ações violentas, mas não o ato. Isso também achei massa e um bom exemplo de que essa espetacularização (tão corriqueira de uns tempos pra cá) quando sai de cena, não faz a menor falta.

Ainda coerente e esperto, Receba! traz do nosso DNA todo o alívio cômico necessário. Com equipe 100% baiana, essa deve ter sido a parte mais fácil. Sabe aquele negócio que a gente tem de mandar uma frase engraçada no meio do caos? Pronto, é desse jeito que os momentos de tensão são atenuados. Assim como Salvador, o filme é duro e violento, mas não deixa a esculhambação de lado.

Por fim – e também importantíssimo – o filme acerta em cheio ao trazer grandes e reconhecidos profissionais em todas as funções. Desde a técnica até quem aparece na tela, em todos os papéis, inclusive nos secundários. Por exemplo, você imagina Tânia Toko apenas dirigindo um carro? Ou Lúcio Tranchesi só pedindo uma assinatura?

Pois tem e é um luxo. Aí, ao ver o personagem crescer em segundos, por mais leiga que a pessoa seja, vai poder entender o que significa ser, mesmo, atriz ou ator. Esse pessoal que vem do teatro, que é formado na Bahia e bem antes dos coaches que se limitam a ensaiar as falas e adestrar gestuais. Vá lá, veja a diferença e também fique impressionado.

Receba! estreou, nesta quinta, em Aracaju (SE), Curitiba (PR), João Pessoa (PB), Manaus (AM), Paulista (PE), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ) e Salvador. Aqui, está em cartaz no Cine Glauber Rocha, na Saladearte Cine Daten Paseo e na Saladearte Cinema do Museu. Eu, sendo tu, não deixaria de ir lá.

(Uma dica: a classificação indicativa é 16 anos, mas passa coisa bem mais violenta de dia, nos telejornais. No PlayStation nem se fala. O meu filho – de 13 - eu levei pro cinema. Sobre a sua decisão, é você quem sabe.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo