Cíntia Chagas achou o homem que procurava, casou e deu pra trás
A “submissão” dela tinha limites, mas isso não era dito às seguidoras, claro
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Flavia Azevedo
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Conheci essa “influenciadora” no Instagram. Fui fisgada pelo jeito dela falar sobre o tão maltratado idioma que usamos por aqui. Achei ótima a maneira que ela explica que tanto faz falar “em pé” ou “de pé”, mostra a diferença entre “onde” e “aonde”, esclarece plurais e singulares, “em cima”, “embaixo” e afins. Um trabalho gratuito, nas redes, com linguagem acessível que, imagino, vem melhorando a capacidade de comunicação de muita gente.
Cíntia Chagas também emite boas opiniões (solicitadas) sobre nomes que seguidoras (sim, maioria de mulheres) pretendem dar aos próprios filhos. Com isso, provavelmente, salva muitos bebês inocentes do destino cruel da identificação por palavras estranhíssimas, que atrapalham a vida da pessoa todinha. Cíntia sugere Marinas, Catarinas, Luízes, Antônios, Renatos e outras simplicidades de fácil grafia e rápida compreensão. Até aí, tudo lindo.
Porém, quem decide sobre o que deve opinar é ela, que passou a se posicionar também sobre a relação entre gêneros. Nisso, o algoritmo acabou me mostrando que, na opinião da youtuber, mulheres devem ser submissas aos homens. Que as casadas até precisam servir todos os jantares dos maridos, pedir permissões, aguardar autorizações e fazer com que os horários da casa girem em torno do “chefe da família”. Uma realidade tão distante de mim que, primeiro, achei que ela tava brincando. Porém, era a seríssimo.
Daí, claro, tirei os posts de Cíntia da minha frente, que é o que faço quando me aparecem conteúdos que considero de baixa qualidade. Com isso, nunca mais tive notícias da subcelebridade. Até quinta passada, quando Cíntia apareceu pra mim porque se divorciou depois de sofrer violência doméstica do marido que ela mesma passou a definir como “possessivo, ciumento e controlador”. Ué, gente. Mas não era isso que ela tava procurando?
Porque pense comigo: se cabe à mulher ser submissa, ela será submissa a quem? Evidentemente, a um homem “possessivo, ciumento e controlador” porque os normais não querem nem acham graça. Nesse tipo de relação, é o naipe do ex-marido dela que se encaixa. Esse é justamente o match perfeito. Carne e unha, almas gêmeas, as metades da laranja, bate coração. Ele manda, ela obedece. Ele fala, ela cala. Ele proíbe, ela acata e vai servir o jantar, falando baixinho, pisando suave pra não incomodar. A dinâmica é essa, você sabe.
O que Cíntia pode ter esquecido é que, no pacote que ela propõe também vêm uns gritos e tapas, não adianta tentar customizar. É estrutural, é pilar. Por isso que vivemos dizendo “estude, trabalhe, vista a roupa que quiser, vá aonde desejar, ele não manda em você”. O mote do movimento por nossa liberdade é, no fim das contas, segurança e não “inveja das donas de casa”, como as Cíntias gostam de ironizar. Nem todo homem ‘tradicional’ bate. Mas cada um deles está autorizado pela lógica da qual faz parte.
(É pra ser de igual pra igual em tudo. No sexo, nas decisões, na educação das crianças, na hora de escolher em que restaurante jantar. Nenhum poder pode ser atribuído ou subtraído por motivo de ser fêmea ou macho.)
(Arranjos e divisões de tarefas cabem aos indivíduos, de acordo com pessoais desejos e habilidades.)
Felizmente, a “influenciadora” escapou com vida. Agora, está toda protegida pelas conquistas das insubmissas feministas que providenciaram o direito que ela exerce de ter, por exemplo, uma medida protetiva contra o ex-marido. Também de poder se divorciar e denunciar a violência sofrida. Mais do que isso, Cíntia conseguiu buscar ajuda por ter feito exatamente o oposto do que prega: contraditoriamente, não se tornou dependente do tal deputado de quem, por isso, conseguiu se livrar.
(Ou seja, a "submissão" dela tinha limites, mas isso não era dito às seguidoras, claro.)
Graças a mulheres bem diferentes das exaltadas por Cíntia, ela está em segurança pra contar a história e ser exemplo do óbvio: certos ‘conselhos’ que nos dão servem apenas pra favorecer os insistentes representantes do (felizmente) combalido patriarcado. Que até deambula, mas tem lucidez comprometida e se expressa com alguma dificuldade.
(Eu sei que, estatisticamente, por mais independentes, todas nós seremos surpreendidas por homens de péssima qualidade. Espertas pra reconhecer os sinais - e reagir - nos protegemos mais.)
Quer dizer, a moça achou o homem que procurava, casou e deu pra trás. Não sou santa e achei graça. Pensei "toma, sacana" porque de fato me irritam mulheres que usam espaços de fala pra reforçar como "ideais" e "perfeitas" situações que, no fim das contas, nos matam. Essas saudosas do tempo em que éramos "rainhas do lar" infantilizadas, sufocadas, convencidas de podermos quase nada. Essas que devem querer de volta a época em que a gente não sabia nem gozar.
Se ela aprendeu a lição eu não sei. Se vai mudar o discurso, não verei porque não vou acompanhar. Mas fui falar dessa história com Gui e ele disse que não vê mais esse modelo, que não sabe onde esse povo vive ou do que se alimenta. Nem como acasala ele sabe. Falou que no mundo dele não existe mais homem nem mulher desse tipo e eu sei que é verdade. No meu também tem nem sombra dessa presepada.
“Ain, mas é sua bolha privilegiada”, você pode estar pensando aí. Então, receba a informação de que, no Brasil, em mais da metade dos lares o comando é feminino. No Nordeste, especificamente, 80,2% das famílias têm chefas e não chefes. Na maioria dos lares, somos nós as donas do dinheiro (ou da falta dele, fato) e da casa. Agora raciocine e veja se, diante desse cenário, essa maluquice da youtuber tem alguma base. Mulher submissa hoje é, na maioria das vezes, como um cavalo forte preso por um fio dental a uma cadeira de plástico.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo