Bicha, preta e pobre: dor e resistência
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Jorge Gauthier
jorge.souza@redebahia.com.br
Ser uma bicha preta não é tarefa fácil. Os corpos pretos são os alvos preferidos do açoite desde a primeira metade do século XVI, quando começou oficialmente a escravidão no Brasil junto com a produção de açúcar. De lá para cá, a negritude segue sendo mira para o preconceito. O peso do chicote opressor é ainda mais intenso se, além de preto, o corpo for colorido. A negritude LGBTQIA+ apanha com vozes, gestos e balas. Não há clemência, respeito nem piedade.
O Brasil é o país onde mais se mata homossexuais no mundo. A cada 25 horas é registrada uma morte. Dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) indicam que sete em cada dez dessas mortes são de negras e negros. Na caçada dos preconceituosos, as bichas pretas estão mais vulneráveis. Se forem gays afeminadas, ou ainda travestis e transgêneros, a gana do ódio heteronormativo branco é ainda mais voraz.
A população negra transexual e travesti tem uma média de idade de 30 anos no Brasil. Antes que você ache que isso é ‘mimimi’, segundo o IBGE, a média de vida do brasileiro é de 75,5 anos. Ou seja, os corpos trans colocados à margem da sociedade pela repulsa de não aceitar o que não atende os padrões da sociedade tradicional recebem uma sentença de morte.
O pensamento branco racista é de que nós somos a escória da sociedade. Nos querem ver de volta à senzala. Não perdem a oportunidade de nos ferir. Na escola, eu sempre fui a bicha preta e gorda. Prato preferido para as chacotas, bullying e afins. A sociedade é dividida em castas e nós, bichas pretas, sempre fomos empurradas para baixo. Ainda não morri. Tive sorte. Mas não a mesma de muitas outras bichas pretas que tombaram diante dos feitores contemporâneos que dão tiros, espancam sem clemência somente por sermos bichas pretas. Puro ódio.
Mas, se de um lado, tem açoite, do outro tem um lombo que não se acomoda com a dor e faz disso expressão de sobrevivência. A resistência negra LGBTQIA+ tem cada vez sido mais eficaz.
Dos quilombos vieram o exemplo. Os lugares de refúgios dos nossos ancestrais, hoje, mudaram de nome e de forma. As bichas pretas estão conquistando lugares de destaque nas artes, empresas e militância.
Muitas vezes é uma ação silenciosa, mas bastante efetiva. Quando uma bicha preta chega no topo ela não está sozinha. Ela leva consigo toda a história de vulnerabilidade que nos foi imposta nos últimos séculos nas terras brasileiras.
Precisamos provar cinco, dez, vinte vezes, que somos melhores naquilo que fazemos. Nós podemos ter tanta capacitação e experiência mas, mesmo assim, somos relegados ao segundo plano. É preciso lutar para ser visto, lembrado e reconhecido. E como se diz agora: ‘não vamos passar pano no chão’ para o racista pisar. Respeitem as bichas pretas! Seremos resistência.
Jorge Gauthier é jornalista, editor e idealizador do canal Me Salte no jornal CORREIO. É formado em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia e especialista em jornalismo científico e tecnológico pela mesma instituição.