Cara de monstro
Gente monstruosa não usa crachá de monstro, e nem plaquinha dizendo “mantenha distância"
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Mariana Paiva
Coisa mais difícil é que gente monstruosa não usa crachá de monstro, e nem plaquinha dizendo “mantenha distância". Muito pelo contrário: às vezes senta na mesma mesa, confraterniza, abraça no romper do ano, é a maior gente boa do mundo. Lobo em pele de cordeiro, um clássico. E a gente sempre esperando monstro de filme escancarado pra poder acreditar.
Veja só: não é porque a pessoa não se parece com um alien gosmento e a gente não tem nada de Sigourney Weaver que a situação não é péssima. Nem perigosa. É o que bem atestam os boletins de ocorrência de violência doméstica: alguns príncipes dos porta-retratos, quando se zangam, passam de todos os limites do respeito. Agridem. Com palavras, mãos, pés e o que mais puderem. No espelho se parecem com todo mundo, igual que nem qualquer homem de barraca de praia, queimado de sol, sunga ou bermuda, feliz porque o time ganhou. Nenhum indício físico de que ali mora um monstro: pode entrar e sair de um bar, comer meia dúzia de lambreta que ninguém repara. Não tem cara de monstro. Mas é.
Como também é a mulher que se recusa a ser atendida pela funcionária preta na loja. Em cima do salto 15 e com sua bolsa dura, uma madame é uma madame, mas também um monstro, mesmo fazendo as vezes de outra coisa. Tudo disfarce pra caber no mundo, pra espalhar seu racismo por onde vai. Nada além de um monstro.
Culpa nossa, que assistimos a filmes demais. Nos deixamos engabelar por esse negocinho de fantasia de bicho barulhento, porque monstro de vida real não faz estardalhaço. Caminha incógnito pelas multidões, espalhando fel e fazendo um estrago aqui, outro ali. Desse silêncio se beneficiam especialmente os abusadores familiares e amigos, entre a vergonha das vítimas e as famílias receosas em assumir um escândalo, “não, aqui não, na nossa não. Na de outra pessoa até pode ser, mas aqui não tem disso, não com os meus, que vivem protegidos". Aham. Deus tá vendo. E é dessa peneira que tapa o sol que os monstros gostam mais. Gostam porque silencia, e ainda mais porque perpetua, abre espaço pra que tudo continue. "Quem cala, consente". Não foi assim que aprendemos?
A esses - os monstros de estimação (toda família tem os seus, sejam eles como forem) - um perdão porque em algum lugar são bons. Bons filhos, bons maridos, bons pais, bons transeuntes, bons jogadores de pôquer, bons trabalhadores, sei lá. Alguma desculpa se arranja. Por isso é que "Zona de interesse” é um filme tão bom: monstro não tem cara de monstro. Às vezes se ocupa da mesma coisa que a gente, se preocupa com coisas cotidianas que nem a gente, ouve música, almoça com colegas de trabalho em casa, passeia com amigos. E eventualmente calcula eventualmente como matar mais peças (leia-se "pessoas") numa câmara de gás. Monstro da vida real não tem cara de monstro, já disse?
Não dá pra esperar chifre, cheiro de enxofre nem rabo em gente ruim. Tem filhote de lá ela que vem bem vestido, terno italiano muito bem cortado. Tem monstro quem chega abraçando, com encosto de Ursinho Pooh, amigo da galera. Tem monstro que vai se chegando de mansinho e quando você vê já tá em sua casa, chamando as mulheres no canto pra explodir em agressividade. Você olha e só tem ali uma pessoa, não um bicho disforme de costas derretendo, mãos em vez de patas, voz em vez de grunhidos. E a atitude? De monstro. Alguma coisa de dentro que não se consegue disfarçar apesar do resto.
Falhamos quando falamos "gente bonita", que quase sempre quer dizer: "gente branca e magra". Quando falamos "mal-encarado", que quase sempre se refere a um homem preto. Enquanto isso, estelionatários e monstros de todo tipo seguem por perto, se aproveitando do racismo e do ódio que sentimos enquanto sociedade de quem é preto e pobre (pare de trabalhar e perceba que você está mais perto da sarjeta que do iate). Na nossa vez de brincar, damos ao monstro lugar na janela da Topic. Vai dar ruim? Vai. Mas como diria minha avó, "quem não ouve sossega, ouve coitado".
Mariana Paiva é escritora, jornalista, head de DE&I no RS Advogados e idealizadora da consultoria Awá Cultura & Gente