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Rua na Barra homenageia o primeiro feministo do Brasil


 

Deputado baiano César Zama foi pioneiro na defesa do voto das mulheres no país; participou também das Guerras do Paraguai e de Canudos

  • André Uzeda

Publicado em 22/09/2024 às 05:00:00
César Zama nasceu em 1837, em Caetité, no sudoeste da Bahia. Crédito: Divulgação

Como é sempre costume nos domingos de eleição, a Rua César Zama, na Barra, será ocupada por milhares de soteropolitanos no próximo 6 de outubro, data marcada para o primeiro turno de 2024.

Até chegar ao local de votação – a Associação Atlética da Bahia – é preciso atravessar um mar de santinhos espalhados pelas calçadas, no tradicional derrame de material feito pelos candidatos, na véspera da disputa.

Depois de cumprir o dever cívico, uma fração daqueles frenéticos eleitores, somado a muitos que virão de outras partes da cidade, continuará a percorrer a extensão da César Zama até que ela desemboque na mais charmosa praia urbana de Salvador: o Porto da Barra.

Ali, automaticamente se convertem em banhistas – e passarão as próximas horas discutindo a lisura do pleito ou praticando uma modalidade um pouco mais assanhada de boca de urna.

Toda vez que esse trajeto praiano-democrático se repete honra um dos mais notáveis parlamentares da nossa história. César Zama não é apenas o nome da rua da Barra que chega na praia. Ela homenageia um médico, advogado, jornalista e deputado defensor do voto feminino, com grande notabilidade nos mais importantes episódios da Bahia e do Brasil, entre o fim do século 19 e começo do 20.

O homem entre duas guerras

César Zama nasceu em 1837, em Caetité, no sudoeste da Bahia. Sua mãe, Rita Sofia Spínola, era filha de uma das mais abastadas famílias da cidade - que legou ao mundo outros grandes expoentes, como Aristides Spínola (advogado, presidente da Província de Goiás e líder espírita) e Anísio Spínola Teixeira, ou, simplesmente, Anísio Teixeira, criador do movimento da Escola Nova e um dos maiores nomes da educação brasileira.

O pai de César Zama era o italiano Cesare Zama, foragido de seu país sob a acusação de conspiração. Para concluir os estudos, o filho se mudou para Salvador, onde graduou-se em Ciências Médico-Cirúrgicas, em 1858.

Seis anos depois, o presidente militarista do Paraguai, Solano López, invadiu a província brasileira do Mato Grosso, iniciando seu plano expansionista de conquistar uma saída para o mar.

Estava declarada a Guerra do Paraguai, o mais sangrento conflito entre países dentro da América do Sul. Brasil, Uruguai e Argentina formaram a Tríplice Aliança, um bloco bélico que combateu o exército de López – provocando uma carnificina de mais de 440 mil mortos, sendo a esmagadora maioria do lado paraguaio.

Então com 28 anos, Zama se voluntariou para servir como médico no Corpo de Saúde do Exército Brasileiro. Ficou alojado no hospital de sangue, atendendo os soldados que voltavam estribuchados pelas baionetas nos campos da batalha.

A ida à guerra alavancou a carreira política do jovem voluntarista, assim como de outros médicos baianos que serviram no conflito internacional, como Sátiro Dias, Rodrigues Lima e Artur César Rios.

O descendente de italiano enfileirou eleições consecutivas como deputado para a Assembleia Provincial da Bahia, se destacando pelo dom da oratória.

Com o fim do Império, em 1889, Zama fundou o Pequeno Jornal, um folhetim aguerrido, usado para combater o governador Manuel Vitorino, nomeado chefe da província da Bahia por Marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente da República recém-nascida.

Com outro jornal fundado por ele, o Libelo Republicano, em 1896, foi para sua segunda guerra. Desta vez como jornalista, denunciando a violência das tropas federais e enaltecendo a resistência dos sertanejos no Arraial de Canudos.

“A carnificina dantescamente pavorosa que ensanguentou o sertão baiano”, escreveu Zama, expondo seu evidente talento literário, sobre a quarta expedição que dizimou por completo o condado organizado por Antônio Conselheiro.

"O Libelo republicano é considerado referência, ao lado de Os Sertões, de Euclides da Cunha, sobre a tragédia do movimento conselheirista no interior baiano", escrevem as historiadoras Liliane de Brito Freitas e Consuelo Novais Sampaio, em artigo dedicado a César Zama.

Voto das mulheres

Embora tenha uma vida entrecortada por grandes fatos históricos e doses de emoção, incluindo dois fronts de batalha, a maior e mais notável luta de César Zama foi travada no campo das ideias.

Em 1891, os parlamentares eleitos por várias províncias se reuniram para debater a organização da Nova Constituição Republicana Brasileira, que veio para substituir a de 1824, imperial, outorgada por Dom Pedro I.

Na Assembleia Constituinte, Zama foi o pioneiro na defesa do voto das mulheres. Na Constituição do Império apenas homens, alfabetizados e com renda acima de 100 mil-réis podiam votar.

Zama travou uma batalha na defesa da bandeira sufragista, mas acabou derrotado no plenário pela ala conservadora (o Centrão da época). Caso Zama tivesse maioria para aprovar seu ponto, o Brasil teria se tornado o primeiro país no mundo a conceder direitos políticos às mulheres – posto que ficou com a Nova Zelândia, em 1893.

As mulheres só conquistaram o direito de voto no Brasil 42 anos depois da proposição de Zama, no governo de Getúlio Vargas, quando boa parte do mundo já havia avançado na questão.

Ainda à época, o deputado baiano vaticinou: "Bastará que qualquer país importante da Europa confira-lhes os direitos políticos e nós o imitaremos. Temos o nosso fraco pela imitação”.

Em Caetité, terra natal de Zama, o fórum da cidade homenageia o filho ilustre. E a casa onde ele nasceu é tombada desde 2008 pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.

Em Salvador, apenas esta rua na Barra faz referência ao primeiro feministo do país. Mas também não é qualquer rua – é uma que tem saída para o mar, motivo pelo qual Solano López promoveu uma guerra sangrenta e não conseguiu obter.

Esta coluna é dedicada a meu pai, Jorge Uzêda, doutor em História, que me contou sobre César Zama, enquanto me levava para um mergulho no Porto da Barra.