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O brasão da Bahia é feião. Tem que mudar!


 

Nosso distinto é uma loucura: tem barco, estrela, latim, homem de sunga e pirâmide. Para completar, é branco, europeu e colonizador

  • André Uzeda

Publicado em 20/10/2024 às 05:00:00
Brazão da Bahia. Crédito: Divulgação

Os belo-horizontinos já deram a letra. É possível alterar símbolos oficiais por meio de referendos populares. No último dia 6 de outubro, enquanto os brasileiros foram às urnas votar em seus candidatos a prefeito e vereador, os mineirinhos comeram pelas beiradas e propuseram uma consulta adicional: escolher se alteravam ou não a bandeira da cidade.

No fim, a proposta foi rejeitada por 84% do eleitorado. O resultado acachapante é o que menos importa aqui. Como um pouco de esforço e muita criatividade, a Bahia pode repetir o plebiscito, mas não para alterar sua própria flâmula – simples, bonita, harmônica e eficiente.

Nosso distintivo feio, mal-diagramado, canhestro, defeituoso, esquisito, problemático e mocorongo é outro: o brasão de armas do estado. Um vatapá de loucuras que parece ter surgido num trabalho apressado, com prazo curto de entrega e finalizado numa quarta-feira de cinzas, após um Carnaval de reprisados virotes.

De bate-pronto, o que se vê no brasão da Bahia é a imagem de um homem branco, musculoso, de barba e cabelos castanhos, trajando uma exótica sunguinha vermelha. Atrás dele há uma bigorna. Com a mão direita, ele aciona a alavanca que parece fazer girar a roldana de uma misteriosa máquina.

A outra mão ele estende até se entrelaçar com uma moça branca, descalça, de vestido verde e lenço vermelho na cabeça. Os dois se olham com cara de bunda. Não sorriem.

A senhorita ainda segura a bandeira da Bahia, enquanto um triângulo mágico, surgido do absoluto nada, sobrevoa até estacionar a meio mastro.

No meio, há um quadro com um desenho de um barquinho. Lá, nota-se a penumbra de um homem acenando com um lenço branco para uma enorme serra. Em cima desse quadro, uma enorme estrela brilha perto do rosto do casal.

Ao pé da gravura, palavras em latim emolduram a monstruosidade estética: 'per ardua surgo' ("venço apesar das dificuldades", em livre tradução).

São tantos elementos juntos e misturados que fica difícil compreender cada coisa separadamente. O pior é que o mal-apanhado distintivo tem uma explicação histórica e cada componente hediondo ali presente sinaliza para uma razão específica.

É horrível e o povão ficou de fora

O brasão da Bahia está em uso desde a primeira Constituição da República, promulgada em 1891, ainda que tenha passado por algumas repaginações e agregado novos elementos desde então.

O homem barbudo representa a força do trabalho. O maquinário atrás dele significa a indústria – embora a Bahia ainda fosse um estado agrário e de recente mão de obra escrava no fim do século 19.

A enfezada senhorita simboliza a República, numa inspiração clara do quadro 'A Liberdade guiando o povo', do francês Eugène Delacroix, no qual uma mulher com os seios à mostra ergue uma bandeira da França em meio à uma revolução armada.

A pirâmide voadora é um símbolo da maçonaria, também presente na própria bandeira da Bahia. O homem dentro do barco é uma referência à chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral à praia de Porto Seguro, onde primeiro desembarcou para iniciar o processo de colonização do Brasil.

A estrela brilhante é a própria Bahia. Na bandeira nacional, claramente inspirada na bandeira dos Estados Unidos, cada estado é representado por uma estrela.

Mesmo conhecendo um pouco mais da origem dos elementos fica difícil criar uma empatia pela disforme figura. Até porque, ao dissecar cada traço, fica claro que não há qualquer representatividade do povo baiano entre os elementos inseridos. O brasão da Bahia não representa o povo baiano!

O estado possui 27 territórios de identidade, definidos recentemente a partir do espaço geográfico, modos de vida, cultura, instituições, e com uma população com grupos sociais relativamente distintos.

A questão é que nenhuma dessas representações aparece no brasão, que privilegia uma visão europeia, branca e colonizadora. A república brasileira, quando proclamada, fez questão de deixar o povo de lado – assistindo a tudo bestializado.

Por que é importante mudar o brasão?

O fato do brasão de armas da Bahia ser bem feião já seria um ponto fundamental para ensejar uma mudança imediata. No entanto, há outro fator de maior importância.

Há 15 anos, as fardas dos colégios da rede estadual de ensino são padronizadas e carregam no peito o medonho escudo. Em outras palavras, o ensino público baiano passou a adotar justamente uma representação europeia, branca e colonizadora.

Em tempo de movimentos decoloniais, de questionamentos abertos ao ensino de uma história oficial que declina a participação popular nos eventos fundamentais de uma nação, é simbolicamente forte que um brasão anti-povo estampe justamente o uniforme de alunos de baixa renda.

Com esforço e criatividade dá para mudar isso. Propor soluções mais representativas, bonitas e populares. Muita gente vai tentar colocar gosto ruim, dizer que é desnecessário, balela e tudo mais.

Como ensina o próprio brasão feioso, 'per ardua surgo' – dá pra vencer, apesar das dificuldades.

Esta coluna é uma homenagem a meu amigo João Gabriel Galdea, eterno Baianidade, que me alertou para a feiúra do brasão da Bahia