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Grande líder negro que teve a cabeça a prêmio, Lucas da Feira morria há 170 anos


 

Historiadores tentam reescrever versão que condenou figura importante de Feira de Santana

  • Da Redação

Publicado em 29/09/2019 às 06:03:00
Atualizado em 20/04/2023 às 08:04:08
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Uma das formas mais inteligentes de chamar alguém de asno e, por tabela, avançar terrenos numa discussão política é evocar a imaculada história. Nesta polarização que o Brasil se meteu há alguns anos, a antes periférica disciplina de ensino médio escalou o altar de venerável.

“Se conhecesse a história você não diria estes absurdos”, rebate, em tremelique didático, o rapazote tão dono de si. O objetivo deste texto, em absoluto, não é pregar contra a ciência historiográfica. Nem poderia, sob o provável risco de ter meus lóbulos arrancados pelos meus queridos genitores. Sou filho de dois professores desta área do conhecimento.

Mas é exatamente por esta linha hereditária que aprendi, ainda muito púbere, que a história não é isenta em absolutamente nada. É contada a partir dos vencedores e que, embora se preocupe com os acontecimentos do passado, é gestada por motivações do presente. Personagens, pensamentos, decisões nem sempre estão contemplados na narrativa histórica, tornados invisíveis por interesses e escolhas. Todos estes prolegômenos são apenas pra falar o essencial: a gente não sabe é de porra de nada.

Na última quarta-feira, 25 de setembro, um dos personagens mais emblemáticos da Bahia completou 170 anos de executado. E acredito ser bem possível que você sequer ouviu falar dele. Lucas Evangelista, ou simplesmente Lucas da Feira, é a síntese da violência que foi a escravidão no Brasil e também figura de peso na luta de resistência dos próprios negros que não aceitavam o regime de subordinação, aprisionamento, trabalhos forçados e castigos físicos. Sua data de nascimento é cercada de mistérios, assim como outros tantos aspectos que envolvem sua vida. O epíteto de “esfinge negra”, dado pelo romancista Sabino de Campos, resume a dúvida injusta que paira sobre Lucas da Feira: herói ou bandido?

Lucas nasceu no início do século XIX, numa região hoje pertencente à cidade de Cachoeira. Filho de negros jejes (trazidos à força da região de Daomé, na África), trabalhou desde a primeira infância na lavoura e na carpintaria.Aos 21, foge da fazenda onde era mantido escravo e passa a viver no meio do mato próximo às imediações da Vila de Sant’Ana, embrião do que viria a se tornar a cidade de Feira. Lucas passa a viver de furtos aos senhores de engenho e lidera um grupo de mais de 30 ex-cativos armados. A existência de um ajuntamento de negros engatilhados vivendo nas cercanias do município cria temor e pânico na elite feirense.Rebeliões de diversos interesses estavam em pauta naquele Brasil regencial. Dom Pedro I havia renunciado ao trono, em 1831, e seu primogênito ainda não tinha idade mínima para suceder a linhagem dos Bragança. Juntas provisórias, formadas por padres, políticos e poderosos latifundiários, concentram o poder do império neste período. Revoltas explodem em várias províncias. Aqui na Bahia ocorre a Sabinada e também Revolta dos Malês, em 1835, quando os negros islâmicos tomam e ocupam a cidade de Salvador por um dia inteiro. Em Feira, várias expedições fracassam no intuito de capturar Lucas. Em 1846, com Dom Pedro II já empossado imperador, um edital publicado pelo presidente da província da Bahia, oferece a fortuna de quatro contos de réis para quem prendesse o líder rebelde.  A premiação incluía até escravos na empreitada, oferecendo a carta de alforria em substituição ao montante em moedas.

Depois de resistir a tantos ataques, Lucas da Feira é capturado em janeiro de 1848, numa emboscada feita por José Pereira Cazumbá – um pária que havia assassinado um velho sertanejo e era foragido da justiça. Na tentativa de fuga, Lucas leva um tiro na mão esquerda, que resulta na amputação do membro.

A noticia da prisão é recebida com festa na Vila de Sant’Ana. Há queima de fogos, repique de sinos e até os párocos da Igreja Matriz celebram uma missa pela captura. A mão amputada vira troféu e é exposta durante as festividades.Lucas é levado a Salvador e fica detido no Forte São Marcelo, na baía de Todos os Santos. Mais de um ano depois vai a julgamento, onde admite ter matado mais de 16 homens que tentaram lhe prender. Ele é condenado e enforcado em praça pública, no campo da Gameleira, em Feira.Depois da primeira morte, vem o segundo assassinato: o da reputação. Lucas da Feira é apresentado como um criminoso pela historiografia e não como um notável herói, precursor do cangaço, que ousou desafiar o sistema escravagista e viver em liberdade.

Em 2010, um projeto de lei para homenagear Lucas tramitou na Câmara de Vereadores de Feira de Santana, mas foi rejeitado por lhe atribuírem uma vida criminosa pregressa. No dia dos 170 anos da execução, a Defensoria Pública da Bahia organizou um júri simulado na cidade para discutir a prisão, o julgamento e a condenação do acusado. Na ocasião, a defensora Fernanda Morais questionou, em defesa do líder rebelde:“Por que temos tanto medo da nossa própria história? Por qual motivo quiseram nos esconder Lucas ao longo de tantos e tantos anos? Por quais razões, em pleno ano de 2019, as vezes não reunimos sequer o mínimo conhecimento sobre quem foi Lucas e como a sua trajetória de vida interferiu e até hoje interfere na história da nossa própria cidade? A quem aproveita ou a quem interessa todo esse silenciamento?”No júri simulado, Lucas da Feira foi absolvido por 5 votos a 2.

Conhecer a história não é suficiente.

É preciso saber também que história conhecemos.

[Esta coluna é dedicada a Fernanda Morais, que me apresentou Lucas da Feira e lutou pela sua absolvição].