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Violência contra a mulher: democracia macabra


 

'Constatar que a violência contra a mulher é tragicamente democrática é um passo importante para promover políticas eficazes para o seu enfrentamento', escreve Renata Deiró

Publicado em 13/08/2024 às 05:01:16
Delegada foi encontrada morta dentro de carro. Crédito: Divulgação

No último domingo (11), através da imprensa, soubemos do brutal assassinato da delegada Patrícia Aires, e que a linha de investigação policial apontava para um possível feminicídio, que é o assassinato da mulher pelo simples fato de ser mulher.

Ao nos depararmos com notícias assim, causa-nos automática estranheza saber que a vítima pertencia a uma das classes sociais mais abastadas, possuía nível superior, era economicamente autossuficiente e conhecedora da temática que envolve o direito, e mais especificamente os direitos das mulheres e as pautas relacionadas à violência doméstica e familiar.

No pensamento popular, uma mulher instruída, com boa renda, policial, com acesso à arma de fogo, não estaria sujeita a tais violências, não sendo “possível” acreditar em tal fato, visto que a mulher teria acesso aprofundado das informações e teria identificado com facilidade o perfil do seu agressor e não se sujeitaria a tais abusos, sabendo se defender ou sair da relação quando identificada a violência.

Se ela, uma delegada, instruída e capacitada, culta e possivelmente munida de uma arma de fogo, foi vítima de agressões e toda sorte de violências, chegando a ser morta pelo companheiro, o que será de nós, “pobres mortais”?

Obviamente que os números nos mostram que mulheres pobres, periféricas e negras são identificadas como as maiores vítimas dessa violência, contudo fatores socioeconômicos, tabus e mitos sociais contribuem para uma baixa notificação por parte das mulheres de classes sociais mais elevadas, o que nos conduz para o entendimento de que a morte de Dra. Patrícia mostra que nenhuma mulher está livre de sofrer violência doméstica e familiar.

Ainda convivemos com mitos que permeiam o imaginário e precisam ser eliminados, como o de que a mulher permanece num relacionamento abusivo porque gosta; a ideia de que o agressor é 24 horas por dia agressor, quando, na verdade, várias pesquisas identificaram padrões de relacionamentos abusivos em que o sujeito muda o comportamento, oscila entre a agressividade e o cuidado, confundindo a vítima; por fim, a ideia de que todas as mulheres reagem da mesma forma à violência.

O trauma é uma experiência única, e muitas vezes, resulta na permanência da vítima no relacionamento.

Constatar que a violência contra a mulher é tragicamente democrática é um passo importante para promover políticas eficazes para o seu enfrentamento, especialmente as que possam mudar o paradigma das relações afetivas entre homens e mulheres, eliminar o machismo que permeia a cultura, as religiões, os costumes, a educação e a vivência de meninos e homens. Uma nova masculinidade precisa surgir da nossa indignação, e isso é tarefa civilizatória.

Nenhuma lei por si só, nenhuma medida punitiva é capaz de refrear ou de alterar relações de poder enraizadas de forma a perpetuar a dominação dos corpos e das vidas das mulheres pelos homens, especialmente quando se busca culpabilizar a vítima pela própria violência sofrida, procurando em seu comportamento o motivo pelo qual não se desvencilhou de seu algoz.

Essa democracia macabra, onde todas as mulheres são potenciais vítimas de violência doméstica e familiar, nos traz a sensação de impotência, de paralisação, que nos faz questionar nosso trabalho e, principalmente, se podemos encontrar alguma saída.

Apesar dessa sensação, é preciso reagir, não perder a capacidade de se indignar e compreender que todo passo à frente deve ser perseguido, ainda que seja um longo caminho a seguir.

Renata Deiró é presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da OAB-BA. Crédito: Acervo pessoal

Renata Deiró é advogada especializada no atendimento às mulheres vítimas de violência e presidente da Comissão de Proteção aos Direitos da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil seção Bahia (OAB-BA).