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O relógio do planeta tique-taqueia sem dó rumo a um cenário que pode ser de irreversibilidade

Publicado em 17/09/2024 às 05:00:00

A fábula do escorpião que pica o sapo que lhe serve de meio para transpor o rio é frequentemente utilizada como metáfora para situações onde o agente do mal não consegue frear a sua natureza, mesmo que esteja incluído entre as suas próprias vítimas. As vicissitudes do capitalismo são inúmeras, sobretudo nas situações de enfraquecimento dos seus contrapontos. Após o neoliberalismo, observou-se que não somente as concessões feitas quando o bem estar social foi um forte aliado contra a ameaça comunista foram retiradas, como se criaram renovadas regras de jogo favoráveis à sua dinâmica excessivamente acumulativa.

É difícil não reconhecer que o capitalismo, enquanto sistema econômico e social, trouxe resultados expressivos para a humanidade. Desde o século passado, a expectativa de vida global foi dobrada e houve uma redução drástica na taxa de extrema pobreza. Durante um longo período de tempo, ainda que não seja possível negar o seu viés excludente, a exploração de recursos produtivos com a finalidade de obtenção de lucros estabeleceu uma série de transbordamentos positivos que, de um modo geral, qualificaram a vida humana. Há, no entanto, características intrínsecas ao seu funcionamento que se mostram progressivamente mais incompatíveis com o antropoceno, como, cada vez mais, compreendemos a época geológica contemporânea.

Após respirarmos aliviados pelo arrefecimento da pandemia de Covid-19 que ceifou milhões de vidas no planeta, presenciamos, nos últimos meses, com cada vez mais clareza, o potencial impacto do aumento da temperatura global na qualidade de vida. No Brasil, fogo e água são dois lados da mesmíssima moeda. A pandemia e os eventos climáticos extremos compartilham entre si mais que o seu caráter trágico. Em ambos os casos, os remédios mais indicados para os seus enfrentamentos exigem visão de longo prazo. A primeira demandou afastamento entre as pessoas e fechamento provisório de estabelecimentos para o retorno mais breve às condições de normalidade. Os segundos, por sua vez, exigem que atividades rentáveis como a exploração e produção de petróleo, a agricultura associada ao desmatamento, o setor de transporte e algumas atividades industriais sejam substituídas ou controladas, sob pena de tornar o planeta inabitável em poucas décadas.

As notícias da ocorrência de mais de trinta mil focos de incêndios no país, apenas nos primeiros dias de setembro, são ainda mais estarrecedoras quando somadas às seguintes perspectivas: 1) Há sérios indícios de que os incêndios são, em boa parte, criminosos. 2) O Congresso Nacional, no início do seu mandato atual vinha discutindo regras para afrouxar o nível de fiscalização ambiental por parte do governo. 3) O Brasil arde em chamas e, até maio desse ano, apenas uma deputada, entre os 513 parlamentares, havia destinado verba de emendas às mudanças climáticas.

A lógica do curto prazismo e do lucro imediato pode responder por parte expressiva dos ganhos sociais dos últimos séculos, mas a era contemporânea parece exigir, sobretudo, um olhar para o amanhã. Há de se acompanhar se o capitalismo, com sua lógica intrínseca, saberá se reinventar. Enquanto isso, o relógio do planeta tique-taqueia sem dó rumo a um cenário que pode ser de irreversibilidade da sua inviabilização. Por ora, só temos este planeta para atravessar o rio. O sapo quando deu carona para o escorpião talvez tenha se esquecido que a prevalência da sua natureza tornaria a viagem sem volta.