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Nós temos os Zambiapungas


 

A salvaguarda dos bens patrimoniais requer cada vez mais que se dê consequência prática e objetiva à sua percepção, exposição, uso e desfrute pela sociedade

Publicado em 15/11/2023 às 05:00:00
Artigo. Crédito: Arte CORREIO

Povo eminentemente festeiro que somos, o Dia das Bruxas atrai, a cada ano, mais interesse no país, importando comemorações alheias. Um olhar para a cultura local pode, no entanto, sugerir oportunidade para a valorização de manifestações próprias. Sem xenofobia nem discriminação, é preciso preservar a cultura local e reservar espaço para comemorações genuínas, herdadas do nosso passado colonial.

Pois não é que, aqui mesmo na Bahia, é possível encontrar eventos de celebração à vida e de reverência aos mortos realizados na madrugada do primeiro de novembro, Dia de Todos-os-Santos, véspera do Dia de Finados?

Coube ao Instituto de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul da Bahia (IDES), em plena pandemia, sob os auspícios da Lei Aldir Blanc, colocar em destaque a tradição dos Caretas e Zambiapungas do Baixo Sul baiano.

Presente nos municípios de Cairu, Nilo Peçanha, Taperoá e Valença, esta manifestação cultural é uma herança dos Bantos, os primeiros negros exportados em grande escala para a Bahia, ainda no remoto Século XVII.

Oriundo das práticas religiosas de matriz bantu (Congo-Angola), a apresentação dos bandos de Zambiapungas integra também as manifestações do catolicismo popular, e não sem razão participam das festas dos padroeiros locais e, muitas vezes, já foram aplaudidos em desfiles na capital do estado, em eventos culturais.

Com suas roupas de seda e máscaras multicoloridas, movidos pela sonoridade de enxadas, búzios, caixas, tambores e cuícas, suas apresentações, de caráter lúdico e religioso, com coreografia dinâmica e vibrante, espantam os maus espíritos, atraem boas energias e reverenciam a ancestralidade, constituindo um alegre festejo.

Os grupos reúnem homens e mulheres, das atividades mais tradicionais – marisqueiras, pescadores e trabalhadores rurais. Em Valença, provêm do distrito de Maricoabo. Em Cairu, onde se diz terem nascido, estão presentes na sede municipal, na Velha Boipeba, na comunidade quilombola de Galeão e já não mais existem no Morro de São Paulo. Em Nilo Peçanha, é onde apresentam maior dinamismo e vitalidade. Em Taperoá, incorporaram dois personagens hilários, o diabo e o morcego.

Romper a invisibilidade desta importante manifestação cultural constitui um dever a ser assumido pela política cultural da Bahia, valorizando mais uma de nossas tradições.

No próprio Baixo Sul, a Fortaleza do Morro de São Paulo, um importante e imponente patrimônio arquitetônico-cultural, tombado pelo IPHAN, restaurado com apoio do BNDES, mas ainda sem uso, constitui um espaço que se oferece para apresentações regulares, capazes de atrair ainda mais turistas à Ilha de Tinharé, divulgando a cultura regional.

Os diversos grupos poderiam aí se revezar, nos finais de semana, gerar renda para a sua manutenção e sobrevivência, além de promover este importante bem cultural de natureza imaterial. A chegada do verão, alta estação turística, constitui momento apropriado para a implantação de um programa piloto, a ser consolidado.

Reunir em um mesmo evento, a Fortaleza – um espaço qualificado e diferenciado – e os Zambiapungas – uma manifestação cultural genuína e singular –, agrega ao destino turístico, simultaneamente, um equipamento de cultural dedicado ao entretenimento e lazer, e uma apresentação cultural ímpar, soma um bem cultural material a outro, imaterial, diversifica a oferta local e rompe a monotonia e a exclusividade do turismo de sol e praia.

Não bastam apenas os atos de tombamento. A salvaguarda dos bens patrimoniais requer cada vez mais que se dê consequência prática e objetiva à sua percepção, exposição, uso e desfrute pela sociedade. Esse é um desafio que se impõe à modernização das políticas de proteção histórica, arquitetônica e cultural, requerendo uma nova atitude – proativa e dinâmica – por parte dos órgãos públicos incumbidos de sua guarda.

É preciso espantar os maus espíritos que perseguem os nossos bens culturais!

Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.