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Eu, robô: quais os limites éticos para contratar um androide que limpa sua casa?


 

Protótipos já demonstram habilidades que vão desde servir bebidas até cantar, dançar e fazer piadas

Publicado em 24/11/2024 às 08:42:26
Robô humanoide pode interagir com o público . Crédito: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024

Há mais ou menos 30 anos, minha esposa e eu tomamos uma decisão: evitar ter em casa uma pessoa para fazer aquilo que podemos fazer. Ou seja, cozinhar, limpar e arrumar a casa. Nem quando nossa filha nasceu cedemos à tentação. Para nós, parecia uma questão de princípio, uma decisão ética sobre a dignidade do trabalho e as responsabilidades que nos cabem.

Porém, confesso que minhas convicções balançaram diante da pirotecnia do evento "We, Robot", da Tesla, realizado em 10 de outubro. Como se fosse um Fausto, com suas promessas, Elon Musk mostrou uma série de inovações impressionantes. Entre elas, o Cybercab, um robotáxi totalmente autônomo e o Robovan, uma van autônoma projetada para transportar até 20 passageiros. Só essas promessas já são por si só impactantes, podendo transformar o futuro do transporte coletivo.

Mas a verdadeira estrela da noite foi a nova versão do robô humanoide da Tesla, o Optimus. Dezenas de protótipos invadiram o evento, interagindo com a plateia e demonstrando habilidades que iam desde servir bebidas até cantar, dançar e fazer piadas. Na internet tem vários vídeos do evento e mais recentemente a celebridade Kim Kardashian postou novos vídeos interagindo com esses bots. Embora tenha havido especulações de que alguns desses robôs estavam sendo supervisionados por humanos, as funcionalidades apresentadas pelo Tesla Bot foram, sem dúvida, surpreendentes.

Isso me fez refletir: embora eu considere eticamente questionável contratar uma pessoa para tarefas domésticas — a menos que haja real necessidade, como no caso de idosos, pessoas com alguma deficiência, que passam pouco tempo em casa, etc. —, não sei se sinto o mesmo em relação aos robôs. A ideia de um robô limpando minha casa é tentadora. Mas a substituição da mão de obra humana por máquinas nos liberta das tensões morais ou apenas cria novos dilemas?

No livro O Homem Bicentenário (1976), Isaac Asimov narra a história de Andrew, um robô que, ao longo de dois séculos, se transforma de um servo doméstico altamente eficiente em algo muito mais complexo: uma entidade que luta pelo reconhecimento de sua humanidade. No início, Andrew era um recurso prático, sem rosto ou emoções, mas sua inteligência e capacidade criativa o conduziram a questionar sua função como servo. Ele queria ser livre, ser tratado como igual. O dilema central é o que nos torna humanos. Consciência, mortalidade ou a maneira como interagimos com o mundo? A jornada de Andrew reflete nossos próprios questionamentos sobre identidade, liberdade e dignidade.

Embora a história de Andrew possa parecer distante, talvez o futuro que ela sugere esteja mais próximo do que imaginamos. O Tesla Bot, prometido como um assistente robótico para tarefas simples e repetitivas, já começa a materializar parte dessa visão. Com previsão de lançamento entre 2025 e 2027, o robô humanoide da Tesla deve chegar ao mercado norte-americano por cerca de US$ 20.000, tornando-se uma alternativa acessível dentro do contexto da automação doméstica.

A Tesla, no entanto, não está sozinha nessa corrida tecnológica. A startup indiana Addverb Technologies planeja lançar seus primeiros humanoides em 2025, projetados para realizar tarefas complexas e se adaptar a diferentes cenários, que vão desde o varejo e a moda até cuidados com idosos e defesa. Já a Figure AI, em colaboração com parceiros como a OpenAI, está desenvolvendo o Figure 01, um robô humanoide voltado para tarefas manuais tanto em ambientes domésticos quanto industriais. Paralelamente, robôs não humanoides, como o Astro, da Amazon, também ganham espaço, oferecendo soluções práticas para o dia a dia, mesmo sem a familiaridade de uma forma humana.

A escolha de criar robôs humanoides, contudo, não é puramente estética. Os desenvolvedores justificam essa opção com um argumento prático: moldamos o mundo ao nosso corpo. Portas, escadas, utensílios e ferramentas foram projetados para serem manipulados por mãos, braços e pernas. A semelhança física com os humanos permite que esses robôs se adaptem a ambientes já existentes, facilitando sua integração sem exigir mudanças estruturais significativas. Mais do que uma questão de familiaridade, é uma estratégia de funcionalidade, além disso nos dá o gostinho de brincar de Deus.

Provavelmente, uma tendência inicial nesse mercado será o surgimento de agências especializadas na locação de robôs, tornando a tecnologia mais acessível a famílias e empresas que não podem arcar com o custo de aquisição direta. Assim como ocorre hoje com equipamentos industriais ou até veículos, a locação permitirá que os usuários experimentem e adaptem esses robôs às suas necessidades, antes de um eventual investimento mais significativo. Além disso, o modelo de locação também deve incluir pacotes de manutenção e atualização tecnológica, garantindo que os robôs continuem operando com eficiência ao longo do tempo.

Com as locações, robôs humanoides e não humanoides poderão transitar por casas, escritórios e fábricas de forma flexível, antecipando um futuro em que a presença de um "assistente artificial" será tão comum quanto a de um eletrodoméstico.

Isso só foi possível com a convergência dos avanços em robótica com os últimos desenvolvimentos dos novos processadores e dos modelos de inteligência artificial, transformando o que antes era apenas sonho em realidade tangível. Embora a singularidade — ou seja, a emergência de uma consciência artificial — ainda pareça mais utópica do que real, as tecnologias atuais já permitem vislumbrar cenários que, há poucos anos, pertenciam apenas aos livros e aos filmes de ficção científica.

Em 1962, o episódio de estreia da série animada “Os Jetsons”, intitulado "Rosie the Robot", antecipou um pouco dessa utopia tecnológica. Na história, Jane Jetson, frustrada com as falhas de seus aparelhos domésticos, decide alugar Rosie, uma empregada robô, para ajudá-la nas tarefas da casa — que, ironicamente, se resumem a apertar botões. Esse sonho de transferir a sobrecarga das tarefas domésticas para máquinas é antigo, desde as primeiras máquinas de lavar até os robôs aspiradores de pó. No entanto, essa narrativa também reflete a persistente desigualdade na divisão do trabalho doméstico, que ainda recai desproporcionalmente sobre as mulheres, mesmo com promessas de alívio tecnológico.

Entre membros de vários povos tradicionais, o trabalho doméstico era realizado de forma coletiva e comunitária, integrado às dinâmicas culturais, espirituais e econômicas do grupo. Ele não era visto como um trabalho "invisível" ou desvalorizado, mas como parte essencial da vida comunitária e do bem-estar do grupo. Diferentemente das sociedades industrializadas ou hierárquicas, as atividades domésticas frequentemente não estavam separadas de outras formas de trabalho, como a produção de alimentos, o cuidado com os mais velhos e a educação das crianças.

A história do trabalho doméstico é profundamente entrelaçada com questões de gênero, classe, raça e colonialismo. Desde a Antiguidade, o trabalho doméstico esteve ligado às tarefas de cuidado e manutenção do lar, realizado principalmente por mulheres e, em muitos casos, por pessoas escravizadas. No Brasil e em outros países da América Latina, a transição do trabalho escravo para o trabalho doméstico remunerado foi marcada por continuidades e transformações que refletem as estruturas de desigualdade da sociedade.

Aqui talvez esteja o ponto central, ou melhor o ponto cego dessa utopia tecnicista: o que perdemos ao delegar essas tarefas para outros humanos ou mesmo para robôs? Atividades como cozinhar, limpar ou cuidar de uma casa são parte fundamental de nosso vínculo com o mundo físico. São trabalhos que nos lembram de nossa interdependência, de nossa materialidade. Ao eliminar essas experiências, será que estamos, de certa forma, nos desconectando do entorno?

Existe algo de sedutor na ideia de um robô que realiza tarefas que consideramos tediosas ou desgastantes. Já que, talvez, ao nos libertar dessas funções, possamos dedicar mais tempo à criatividade, à convivência ou à contemplação. Porém, pergunto-me se um dia ficarei incomodado com a ideia de ver um robô limpando minha casa. Os robôs domésticos do futuro não apenas realizariam as tarefas que consideramos incômodas ou desgastantes; eles também carregam consigo uma nova camada de possibilidades.

Alimentados com inteligência artificial, esses robôs poderiam ser mais inteligentes que seus patroẽs (como a Rosie faz ao resumir e explicar os estudos da filha dos Jetson no episódio citado). Além de faxinar e cozinhar, esses robôs também podem ser enciclopédias ambulantes, professores e até artistas. Imagine pedir conselhos médicos ao mesmo robô que limpa seu banheiro. A integração dessas múltiplas funções transforma o robô em um paradoxo, que combina atividades extremamente desvalorizadas e seu oposto.

As histórias de Andrew e Rosie nos fazem refletir: mesmo sem alma ou consciência, um robô pode nos questionar sobre quem somos e como tratamos aqueles que nos servem, sejam humanos ou não. Enquanto discutimos no Brasil a redução da jornada de trabalho de 44 para 36 horas semanais, eliminando a escala 6x1, surge a pergunta: qual será o impacto da automação nesse contexto? O que parece inevitável, entretanto, é que o futuro trará dilemas que talvez nem Asimov pudesse prever. No final, o verdadeiro desafio não será apenas sobre os robôs, mas sobre nós mesmos: que tipo de humanidade queremos construir quando nem cuidar do nosso lar nos interessa?

Dedico essa coluna a Agnes Mariano, que me ajudou a perceber a importância de cuidar.

Esse texto contou com a assistência de uma IA

Andre Stangl é professor e pesquisador visitante (ISC-UFBA), cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP.