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A saturação da Barra


 

Leia artigo de Waldeck Ornélas

Publicado em 18/03/2024 às 05:27:00

Salvador é lugar em que festa é negócio, dando suporte ao turismo, um dos principais vetores econômicos da cidade. Ao contrário do que muitos pensam – e alguns criticam – a realização do calendário anual de eventos não constitui aqui uma sequência de meras ocasiões de lazer para a população local mas, ao contrário, oportunidade de trabalho – formal e informal, qualificado ou não – e geração de renda para uma população que dispõe de poucas e limitadas alternativas.

Juntos, a prefeitura e o estado, desenvolveram e aprimoram, ano a ano, complexa tecnologia na organização e gestão de grandes eventos, capaz de reunir milhões de pessoas, diariamente, em cena aberta. Não sem razão, portanto, o Carnaval de Salvador da Bahia é evento consolidado e certificado como a maior festa popular do planeta (Guiness Book, 2004).

Por isto mesmo o carnaval constitui sucesso incontestável e atrai crescentes multidões, a ponto de, agora em 2024, provocar, pela primeira vez, no sábado, às 18h30, o fechamento dos portais de acesso ao ambiente da festa no bairro da Barra, por haver atingido a capacidade máxima de foliões projetada para a área.

Este fato demonstra que, embora o planejamento operacional da festa esteja sendo eficiente, efetivo e eficaz, o seu planejamento estratégico tem deixado a desejar. Com o passar dos anos, consolidou-se um desbalanceamento entre os circuitos Dodô (Barra-Ondina) e Osmar (Campo Grande-Praça Castro Alves), por conta da localização dos camarotes – que substituíram os clubes sociais –, da concentração das grandes atrações, da requalificação do espaço físico e da qualidade do ambiente natural, entre outros fatores.

No carnaval deste ano, a criativa e inovadora passarela dos ambulantes, uma instalação temporária situada na praia do Farol da Barra – liberando espaço na avenida para os foliões –, foi atropelada pelo gigantismo de trios elétricos com excesso de largura e altura – um item de fácil regulamentação – levando à necessidade do desmonte da iluminação especial da área – um item essencial à segurança e beleza da festa – a indicar que não apenas o afluxo de pessoas precisa ser revisto.

Beneficiada com a primeira etapa do Projeto Orla, que incorporou novos padrões urbanísticos à cidade, a Barra vem experimentando grandes transformações, que exigem atenção, como as dezenas de prédios que trazem nova e maior população para o bairro, sem o correspondente suporte de apoio comercial e de serviços, por falta da obrigatoriedade de fachada ativa (a-transformação-da-barra). A Barra requer agora, também, o reordenamento do seu carnaval, no bojo de um novo planejamento estratégico para o evento, capaz de torná-lo compatível com a ambiência do bairro.

Mais do que a criação de um novo espaço para a festa, a revalorização do circuito Campo Grande-Castro Alves torna-se uma exigência, não só para desconcentrar o Barra-Ondina, mas, sobretudo, para corresponder à revitalização por que vem passando a rua Chile, com seus novos hotéis de luxo e a volta do glamour de outros tempos.

A simples redistribuição das apresentações entre esses dois circuitos do carnaval ainda será capaz de garantir a redistribuição das pessoas entre os diversos espaços, provocando também a redefinição de ocupação e uso dos imóveis ao longo do corredor da folia no tradicional percurso do Centro, gerando novos camarotes e arquibancadas.

Os interesses da cidade e do estado, a importância da política de turismo e o fortalecimento da economia urbana, precisam estar sempre acima das visões parciais e localizadas dos diversos segmentos do trade da festa, predominando a competência reguladora do Poder Público, como parte de uma estratégia capaz de fazer brilhar ainda mais o Carnaval da Bahia.

Em tempo: este ano ocorreu também saturação no circuito Batatinha, no Pelourinho, área reconhecida pela Unesco como patrimônio arquitetônico-cultural da humanidade, espaço onde grandes concentrações devem ser rigorosamente proibidas. Neste caso, pura insensatez.

Waldeck Ornélas, especialista em planejamento urbano-regional, é autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.