O tamanho do mundo
O cenário de transformação constante que estamos vivendo exige que fiquemos sempre em alerta
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Andre Stangl
astangl@gmail.com
Nossas identidades culturais, crenças e valores podem ser afetados pelo contato com uma nova tecnologia? Até que ponto somos imunes ao vírus da novidade tecnológica? Um relato do New York Times explora o impacto da chegada da internet via satélite Starlink na comunidade Marubo, localizada no Vale do Javari, na Amazônia. Essa comunidade indígena havia escolhido evitar o contato com não indígenas, mas a introdução da tecnologia trouxe mudanças significativas.
Segundo os relatos, a internet trouxe inúmeros benefícios, como a melhoria na comunicação com parentes distantes e a facilitação de atendimentos em situações de emergência, permitindo resgates mais rápidos e eficazes. No entanto, a reportagem destacou que o acesso à internet também gerou alguns desafios. Os jovens, antes integrados às atividades comunitárias, agora passam mais tempo nas redes sociais, ficando mais dispersos e individualizados. O celular conectado, que antes não fazia parte do cotidiano da comunidade, alterou a forma de ocupar e perceber o tempo, mudando a rotina e reduzindo o tempo compartilhado.
Ao longo da história, inúmeros exemplos ilustram o poder transformador de tecnologias que, à primeira vista, parecem neutras, mas que podem alterar significativamente a vida de comunidades inteiras. Essas mudanças são evidentes em diversas culturas e épocas, demonstrando como a introdução de novas tecnologias pode ter efeitos profundos e muitas vezes inesperados. No entanto, a interpretação desses impactos pode variar, com análises revelando tanto aspectos positivos quanto negativos.
O autor canadense Marshall McLuhan (1911-80) é difícil de classificar, pois sua obra transita entre Literatura, Filosofia, Psicologia, História, Biologia, Antropologia, Sociologia e Comunicação. Ele utilizava uma prosa incomum, caracterizada pela justaposição descontínua de aforismos espirituosos, que ele chamava de "probes" (sondagens). Com isso, ele tentava reconhecer padrões, sem compromissos fixos com teorias específicas. A sua abordagem tinha que ser flexível e adaptável para abranger um mundo em constante mudança.
Uma de suas analogias mais famosas compara o efeito das mídias a um tipo de ambiência: “O meio é a mensagem”. Para ilustrar isso, ele usou o exemplo do ambiente aquático do peixe: o peixe não percebe a água ao seu redor até ser retirado do lago. Da mesma forma, não percebemos a ambiência midiática até que surja uma nova ambiência, ou uma antiambiência, que, no caso da eletricidade, pode ser um apagão. Isso pode nos fazer notar como diversos aspectos de nosso cotidiano dependem da eletricidade, que antes eram invisíveis ou não eram notados.
Para McLuhan, os satélites mudaram a forma como percebemos o planeta, funcionando como uma espécie de espelho que nos permite vê-lo como uma totalidade interligada, uma aldeia global. Assim como o microscópio e os telescópios criaram condições para novas explicações sobre fenômenos anteriormente invisíveis, os satélites contribuíram para o surgimento da ecologia. Os satélites reformularam nossa percepção do mundo e nosso papel nele, destacando a interdependência global e a necessidade de uma nova compreensão ecossistêmica das dinâmicas entre os humanos e o ambiente. Segundo McLuhan, desse ponto de vista, não faz mais sentido separar natureza e cultura.
O número de satélites em órbita tem crescido exponencialmente desde o lançamento do Sputnik 1, em 1957. Nos anos 1960, havia cerca de 200 satélites, principalmente para comunicação e observação meteorológica. Nos anos 1970, o número subiu para 500, com o início dos satélites de navegação. Na década de 1980, havia aproximadamente 1.000 satélites em órbita, impulsionados pelo aumento dos satélites de comunicação. Esse número continuou a crescer nas décadas seguintes, chegando a cerca de 1.500 nos anos 1990 e 2.500 nos anos 2000, com a expansão do GPS e dos satélites de observação da Terra.
Nos anos 2010, havia aproximadamente 4.000 satélites, devido ao lançamento de novas constelações e satélites científicos. Em junho de 2024, estima-se que existam cerca de 8.000 satélites em órbita, principalmente devido a megaconstelações como Starlink e OneWeb, que buscam fornecer internet global.
Em dezembro de 2022, foi lançado o satélite SWOT (Surface Water and Ocean Topography), uma verdadeira revolução no monitoramento da situação da água em nosso planeta. Com ele é possível medir a altura da água em corpos d'água e oceanos com resolução sem precedentes, mesmo em áreas remotas. Ele monitora fluxos de rios, volumes de lagos e reservatórios, e variações do nível do mar, fornecendo dados críticos para a gestão de recursos hídricos e agilizando a resposta no caso de desastres naturais, além de melhorar modelos climáticos e previsões. Depois da tragédia no Rio Grande do Sul, talvez não seja preciso explicar a importância dessas informações.
“Antes mundo era pequeno / Porque Terra era grande / Hoje mundo é muito grande / Porque Terra é pequena / Do tamanho da antena”, canta Gilberto Gil, na música ‘Parabolicamará’. Nessa aldeia global, onde todos estão interconectados, independentemente de sua localização geográfica, Gil descreve como antes o mundo parecia grande devido às vastas distâncias. Mas, hoje, parece menor e mais acessível graças às antenas parabólicas (e de internet). E mesmo assim, paradoxalmente, ainda agimos como se as fronteiras fizessem alguma diferença, como se o clima, a água, ou ar tivessem nacionalidade.
No final de sua vida, McLuhan e seu filho Eric desenvolveram uma forma interessante de analisar os ciclos da transformação tecnológica. Eles achavam que essas leis da mídia eram semelhantes a um “tetraedro”. Funcionando como um “poema de quatro linhas”, através de quatro perguntas, seria possível desenhar os ciclos de qualquer tecnologia. As perguntas são: o que a nova tecnologia amplifica, o que torna obsoleto, o que resgata do passado e o que reverte quando levada ao extremo.
Analisando o automóvel, ele amplia as funções de nossas pernas e aumenta a privacidade, tornando obsoletos o cavalo e a charrete. Ao mesmo tempo, resgata a imagem do cavaleiro medieval com sua armadura metálica e comportamento agressivo. No entanto, quando usado em excesso, resulta em engarrafamentos, transformando a velocidade e a privacidade individual em uma experiência coletiva de contemplação.
Vamos retomar o caso dos Marubos, citados no começo, e aplicar o tetraedro. Será que o acesso à internet via satélite vai mudar a visão de mundo deles? (e será que mudou a nossa?).
A internet amplifica o acesso à informação, a velocidade de comunicação e a capacidade de arquivar e recuperar memórias. No entanto, isso pode tornar obsoletas as formas tradicionais de preservar e difundir a cultura. Por outro lado, a digitalização pode resgatar uma percepção não linear do tempo (como, por sinal, canta Gil, em outro trecho da música: “Esse tempo nunca passa / Não é de ontem nem de hoje”). E seguindo as linhas do tetraedro, quando levada ao extremo, a sobrecarga de informações tende a dificultar a filtragem e a classificação, levando a uma nova forma de lidar com a definição de verdade e suas versões.
Não demorou muito para os marubos experimentarem o lado amargo dessa nova aldeia, global e digital. Um trecho da reportagem original teve repercussões inesperadas, provocando uma onda de fake news. Vários sites ao redor do mundo publicaram manchetes sensacionalistas e falsas alegando que a tribo havia ficado viciada em pornografia, distorcendo o conteúdo original do artigo do New York Times. O jornal chegou a publicar um desmentido, e nas redes algumas lideranças dos marubos apontaram a hipocrisia etnocêntrica desse boato, como se eles fossem incapazes de fazer suas próprias escolhas.
O “profeta” McLuhan entendia seu trabalho como um tipo de alerta, pois o cenário de transformação constante que estamos vivendo exige que fiquemos em alerta constante. As mudanças são inevitáveis, mas podemos moderar os impactos negativos. Primeiro, precisamos observar e identificar algum padrão na ambiência criada pela nova tecnologia. Ele considerava as artes como uma forma de experimentar “sair do lago”, criando uma antiambiência, por isso, as artes contemporâneas às vezes parecem desagradáveis e desconfortáveis. Por fim, seria necessário uma nova proposta educacional que nos permitisse preparar os mais novos para as constantes mudanças. Para ele, a educação deveria se tornar um meio de preparação e adaptação, ajudando a sociedade a encontrar um caminho menos assustador e mais sustentável em meio às turbulências do novo tamanho do mundo.
(Esse texto contou com a assistência de uma IA.)
Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. astangl@gmail.com - oficinadelinguagensdigitais.com