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A balança das opiniões digitais


 

O que está por trás da cultura de comentários que avaliam produtos e serviços e influenciam na decisão pessoal

  • Andre Stangl

Publicado em 13/07/2024 às 11:00:00
A era das avaliações. Crédito: Reprodução

Vivemos em uma era em que as avaliações online estão transformando a percepção pública e influenciando decisões de compra, viagens e até mesmo escolhas pessoais. As opiniões se multiplicam vertiginosamente em plataformas como Amazon, Mercado Livre, Google Maps, TripAdvisor e Doctoralia. Nas lojas de aplicativos, uma avaliação detalhada pode até servir para aprimorar o funcionamento de um app. Além disso, nas caixas de comentários em jornais, no YouTube e nas redes sociais todos se comportam como especialistas, não importa o assunto. Hoje em dia, quase ninguém compra alguma coisa ou escolhe um serviço sem dar uma olhadinha nas avaliações.

Mas o que pode estar por trás dessa cultura de avaliação? Quais são as raízes que sustentam o ato de julgar e opinar sobre tudo? E como vamos conseguir fazer boas escolhas em um mundo onde parece não haver mais consenso sobre nada?

Antigamente nossas decisões levavam em conta as opiniões de pessoas de nossa confiança, o boca a boca era determinante para decidir onde ir, o que comprar ou mesmo com quem fazer uma consulta médica. O tamanho das cidades e a intensidade da interação social facilitavam a atualização das informações. Alguém comentava sobre uma nova pizzaria ou criticava a negligência de algum dentista e bastava isso para consolidar ou condenar uma reputação.

Também era comum, especialmente em cidades maiores, a publicação de guias com dicas de restaurantes, programação de eventos e filmes. Esses guias geralmente contavam com uma curadoria especializada, que indicava as melhores opções em cada categoria. Era a época das estrelinhas, de uma a cinco, e nesse cenário um personagem tinha papel central: o crítico. Temido por uns, invejado por outros, ele tinha o poder de influenciar nossas escolhas. No entanto, diferente dos tempos atuais, seu poder não vinha de sua popularidade, mas sim de um acúmulo de experiência. Ou, em alguns casos, da troca de favores. Um bom crítico poderia nos ajudar a descobrir um filme ou um livro e evitar uma compra desnecessária.

Nessa época, a publicidade também desempenhava um papel crucial na maneira como produtos e serviços eram avaliados e percebidos pelos consumidores. Antes da internet, anúncios em jornais, revistas, rádio e televisão povoavam nosso imaginário com objetos de desejo. A propaganda era a alma do negócio, sempre destacando os aspectos positivos dos produtos. A publicidade não só influenciava as decisões de compra, mas também moldava o comportamento do consumidor e a cultura de consumo, estabelecendo muitas marcas como líderes de mercado. Muitas dessas técnicas continuam a ser usadas na publicidade digital hoje em dia. Mas o cenário mudou e agora a publicidade não reina sozinha.

O hábito de avaliar produtos na internet começou nos anos 1990 com o crescimento de plataformas de e-commerce como eBay e Amazon. Com o tempo, essa prática se expandiu para praticamente todos os setores, desde os serviços até a área de saúde. Mas parece que foi justamente na avaliação de lugares que a prática se popularizou. Plataformas como TripAdvisor e depois o Google Maps criaram as condições de expandir essa cultura da avaliação para outros setores, incluindo atividades que não são diretamente relacionadas ao consumo.

O TripAdvisor foi lançado em 2000 com o objetivo de fornecer informações sobre destinos de viagem e permitir a busca de hotéis e atrações. Inicialmente, o site não se concentrava em avaliações de usuários, mas, com o tempo, começou a incluir essa participação, transformando-se em uma das principais plataformas para avaliações de hotéis, restaurantes e atrações turísticas. O Google Maps, lançado em fevereiro de 2005, começou com uma função mais restrita, focada em fornecer mapas e direções. À medida que foi se popularizando, passou a incluir a colaboração dos usuários, permitindo avaliações e comentários sobre diversos locais. Hoje em dia, qualquer usuário pode incluir um novo lugar no mapa e praticamente tudo pode ser avaliado por lá. Restaurantes, mercados, botecos, oficinas, igrejas, praças, praias e até locais de entretenimento adulto (antigamente mais conhecidos como prostíbulos).

No entanto, essa nova cultura de avaliação criou desafios significativos para prestadores de serviço e o comércio em geral. Construir uma reputação se tornou um processo complexo e interativo, exigindo constante engajamento e adaptação. Isso se aplica até mesmo a áreas sensíveis como a saúde, em que as avaliações em plataformas como Doctoralia estão se tornando comuns. Muitos médicos agora precisam aprender a lidar com críticas públicas e, frequentemente, pedir desculpas em público, algo que seria impensável no passado mais formal e hierárquico da profissão.

O site Reclame Aqui é um exemplo interessante dessa nova cultura. Criado no Brasil em 2001, a plataforma permite aos consumidores registrar reclamações sobre empresas e serviços, facilitando a resolução de problemas entre clientes e empresas. Além de ser um espaço para avaliar a qualidade do atendimento e dos produtos, o Reclame Aqui criou um índice de reputação que classifica as empresas com base no número e na qualidade das respostas às reclamações. Esse índice ajuda os consumidores a identificar quais empresas são mais confiáveis e comprometidas com a satisfação do cliente. Já tive a oportunidade de testar o sistema algumas vezes e impressiona a rapidez com que a empresa criticada entra em contato com a gente para resolver o problema.

Aristóteles dizia que a capacidade de avaliar corretamente é uma forma de sabedoria prática (phronesis). Avaliar um produto ou serviço de maneira justa requer uma compreensão equilibrada e a busca pelo meio-termo entre extremos, tornando essa escolha uma questão de ética. Uma boa avaliação é o resultado do equilíbrio entre razão e emoção. Infelizmente, nem sempre as avaliações na internet seguem esse princípio. Na balança das opiniões digitais, é mais comum o destempero nas avaliações negativas, o que leva as plataformas a desenvolver mecanismos de moderação. Além disso, há o risco de avaliações positivas serem compradas ou produzidas por parentes e amigos, o que também precisa ser monitorado e moderado para manter a integridade e confiabilidade do sistema de avaliações.

Por outro lado, tendemos a confundir aspectos pessoais e profissionais. Nem sempre a simpatia é indicativa da qualidade de um serviço, assim como a indiferença não é necessariamente um problema, desde que o serviço seja bem executado. Essas percepções são mais culturais do que objetivas, influenciadas por nossas expectativas sociais e normas locais sobre como o serviço deve ser prestado. Basta comparar a forma como as pessoas de países diferentes avaliam a importância da prestação de serviço. Não vou me estender sobre os estereótipos da situação local, pois os baianos são um caso à parte. Mas avaliar um serviço com base apenas na simpatia do prestador pode levar a julgamentos imprecisos e injustos, ignorando a competência e a eficácia real do trabalho realizado. Voltando a Aristóteles, o ideal é saber equilibrar essa balança.

O problema de confundir a esfera pessoal e a profissional é que podemos criar um monstro. Como no famoso episódio de ‘Black Mirror’ chamado Nosedive, que descreve um mundo onde a vida das pessoas é governada por um sistema de avaliação pessoal. Cada interação, seja uma conversa casual, uma compra ou um serviço, resulta em uma avaliação imediata com base em um sistema de estrelas de cinco pontos. A protagonista, Lacie Pound, vive obcecada em melhorar sua pontuação, atualmente em 4.2, para alcançar uma vida melhor. Ela vê uma grande oportunidade quando sua amiga de infância, Naomi, com uma pontuação de 4.8, a convida para ser madrinha de seu casamento. Lacie acredita que a presença em um evento tão prestigiado pode aumentar significativamente sua pontuação. No entanto, uma série de incidentes e interações desfavoráveis começa a reduzir sua pontuação e à medida que os pontos caem, ela é tratada com crescente hostilidade e desdém pela sociedade, culminando (cuidado com o spoiler) em uma desastrosa participação no casamento da amiga. Depois, Lacie perde tudo, sua pontuação despenca para quase zero, e ela acaba presa, mas paradoxalmente encontra uma nova forma de liberdade ao não estar mais presa às avaliações sociais.

No episódio de ‘Black Mirror’, o risco de confundir a avaliação pessoal com a profissional é demonstrado pela forma como o sistema de pontuações impacta diretamente todas as esferas da vida dos indivíduos. Um sistema que lembra a pontuação do Uber e do Ifood. Essas avaliações constantes e públicas não apenas determinam a aceitação social, mas também influenciam as oportunidades profissionais e a aceitação social. Essa fusão entre vida pessoal e profissional cria um ambiente em que a autenticidade é sacrificada pela necessidade de aprovação constante, levando a uma sociedade superficial e opressiva, na qual a verdadeira identidade das pessoas é suprimida em favor de manter uma imagem pública idealizada. (Sim, esse é mais ou menos o retrato das redes sociais…)

Apesar desse risco, e se tomarmos o devido cuidado de equilibrar o pessoal e o profissional, a prática constante de avaliação e escolha pode ser vista como uma forma de aprimorar nossa convivência e ajustar nossas instituições sociais. Pois o ato de avaliar e opinar sobre os outros é uma forma de deliberação pública e pode ajudar na construção de um espaço comum mais equilibrado e justo. Esse processo de julgamento e troca de opiniões não só enriquece o debate público, mas também fortalece a coesão social ao promover um ambiente onde a diversidade de opiniões é considerada e discutida, de preferência com respeito, moderação e bom senso. 

Esse texto contou com a assistência de uma IA.

Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. astangl@gmail.com - oficinadelinguagensdigitais.com