Agora proibida por lei, pistola de água era usada como instrumento para intimidar mulheres
Casos de assédio e importunação sexual contra mulheres fizeram objeto ser proibido em festas populares
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Larissa Almeida
lpalmeida@redebahia.com.br
Um bloco só de homens travestidos passando pela Avenida poderia causar divertimento pela irreverência dos trajes, não fosse o comportamento de quem faz uso deles. No caso das Muquiranas, há até mulheres que usam a passagem da agremiação como critério na hora de escolher os momentos de curtir o Carnaval de Salvador: se As Muquiranas vão para o Campo Grande, a foliã criteriosa vai para a Barra. O critério, na realidade, é motivado por prevenção de assédio e importunação sexual. Isso porque, nos últimos carnavais, o que não faltou foram casos de integrantes fazendo uso da pistola de água para intimidar mulher nos circuitos – razão que motivou a proibição do objeto via lei.
“A pistola era frequentemente utilizada para molhar as roupas de mulheres, provocando transparências e expondo o corpo das mulheres. Além disso, muitas vezes, as pistolas eram ‘carregadas’ com urina e outros excrementos, água suja de esgoto, criando situações de humilhação”, aponta Izaura Santiago da Cruz, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Faced/Ufba) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim/Ufba).
“Também foram feitas diversas denúncias acerca do uso da pistola como objeto fálico, em uma clara alusão a ameaças de agressão sexual, caso as mulheres não respondessem positivamente aos assédios realizados pelos associados do bloco”, complementa.
Campanha nas redes sociais
Em 2018, mulheres denunciaram em suas redes sociais casos de assédio sexual e de violência física sofridos na passagem do bloco pelos circuitos da folia. O movimento ganhou força na internet com a hashtag: #CarnavalSemMuquiranas.
As vítimas acusaram os foliões do bloco de passar a mão nos corpos delas, de agressão física e de usar palavras obscenas quando elas passam pelo circuito. A fotógrafa do CORREIO Paula Fróes quase teve o equipamento de trabalho danificado por conta das pistolas com água. Ela contou que estava a caminho de um trio elétrico, onde iria trabalhar, quando foi abordada pelos foliões das Muquiranas no circuito Campo Grande.
"Nossa caminhada foi interrompida por um jato de água, sem sentido nenhum, na nossa cara, e com a nossa indignação e solicitação de respeito, foi como se houvéssemos aberto o portal do inferno", relata no texto Maria Carolina, que estava com Paula quando tudo aconteceu.
"Eram os nossos gritos de ‘covardes! mulher não é fantasia! suas desgraças!’ de um lado e de outro, risadas, insultos homofóbicos e jatos e mais jatos de água na nossa cara e na câmera, porque, naquele momento, a câmera era a nossa única arma em mãos, contra umas 20 armas de água. A gente ouvia as risadas e via o peito de inflado com o ego ultrapassando qualquer barreira de sanidade. A imposição de poder deles naquele momento e a nossa sensação de impotência foi completamente devastadora e humilhante. E quanto mais a gente gritava e tentava se defender de alguma forma, mais eles colocavam as armas na nossa cara, mais eles nos insultavam", continua o relato.
As vítimas contaram que um vendedor ambulante tentou interceder por elas, mas também foi hostilizado. As mulheres foram atendidas pela Polícia Militar.
Cerco à mulher no Circuito Campo Grande
Em fevereiro de 2023, um vídeo que mostrava foliões do bloco As Muquiranas encurralando uma mulher no Carnaval viralizou e gerou indignação. Nas imagens, é possível ver a mulher sendo empurrada e jogada para cada um que formava a roda, bem como sendo atingida por jatos d’água sucessivas vezes. Ela só consegue se libertar do cerco após a chegada de agentes da Guarda Civil Municipal.
Naquele mesmo período, uma foliã que teve uma experiência parecida contou que se sentiu "invadida" com a postura dos muquiranas. Ao portal Alô Alô Bahia, a mulher comentou em anonimato que estava curtindo o circuito do Carnaval no Campo Grande, acompanhada da irmã, enquanto o trio do bloco As Muquiranas passava. Ela explicou que dançava normalmente e que isso atraiu a atenção dos homens, que passaram a espirrar água em seu rosto e corpo. “Reparei que quanto mais eu dançava, mais eles se achavam no direito de espirrar a pistola de água em mim", relatou.
A foliã chegou a pedir para que eles parassem, mas não foi atendida. "O que mais me incomodou foi quando miravam no nosso rosto com água gelada, e, por mais que eu pedisse para pararem, eles continuavam espirrando água no nosso corpo e rosto. Voltei encharcada, tive que me retirar várias vezes do lugar que eu queria ficar por isso", comentou.
À época, O Ministério Público da Bahia (MP-BA) entrou com um pedido à Polícia Civil para investigar o grupo. O órgão instaurou um procedimento para apurar o caso. Por sua vez, o bloco disse que a pistola de água não fazia parte do kit da fantasia, que já havia pedido ao Ministério Público e a Câmara de Vereadores a criação da lei para proibir o objeto no Carnaval, e que não poderia "controlar o comportamento das pessoas que depredam patrimônio público e nem daqueles que cometem assédio ou quaisquer outros crimes".
Em abril, o projeto de lei com a proibição do uso de pistolas d'água no Carnaval de Salvador e em demais festas populares da Bahia de autoria da deputada Olívia Santana (PC do B) foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa da Bahia (Alba). Nesta segunda-feira (29), a lei foi regulamentada e já passa a valer nesta edição da folia carnavalesca.
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*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro