Tradição se mantém secular em mais uma Lavagem do Bonfim
Veja imagens
-
Maysa Polcri
maysa.polcri@redebahia.com.br
Passaram exatos 80 anos, mas a descrição do autor Jorge Amado sobre as celebrações ao Senhor do Bonfim poderia ter sido escrita na manhã desta quinta-feira (11). 'Harmoniosa confusão de músicas e cânticos'. Foi como o baiano caracterizou a simbiose entre as diversas manifestações que surgem durante o trajeto entre a Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia e a Colina Sagrada. Mudam os rostos, as pessoas envelhecem, mas o clima continua o mesmo: somente a fé explica a disposição de quem percorre o trajeto por anos consecutivos.
O Cristo crucificado apareceu pela primeira vez para os devotos às 7h20 da manhã. Foi quando, carregada pelo povo, a imagem deixou a Conceição da Praia e foi colocada em um carro modelo HR Hyundai, rodeada de flores brancas e amarelas. Diferente do que aconteceu em anos anteriores, os fiéis não seguraram a imagem sagrada no trajeto de sete quilômetros. A facilidade do veículo não impediu que devotos fizessem questão de percorrer a procissão ao lado do maior símbolo da festa.
Um dos que não desgrudou do Senhor do Bonfim durante todo o trajeto foi João Ribeiro, de 70 anos. Disposto como se as dores que sente cotidianamente na perna dessem trégua no dia de fé, ele não parecia cansado na metade do caminho. “São mais de 50 anos vindo todos os anos. Eu peço saúde para que no próximo possa estar aqui”, disse.
Conforme a caminhada avançava, o fluxo de pessoas crescia. A impressão era de que um grande rio se encontrava com um novo afluente a cada esquina. Vindos do Santo Antônio, Saúde, Barbalho e Liberdade, os fiéis faziam cada vez mais volume na procissão. Quem deu início a trajetória cedo e estava mais à frente, trilhou o percurso ao som do Hino do Senhor do Bonfim, tocado repetidas vezes na versão cantada por Caetano Veloso.
Gersonita, 91, e Valquiria Viana de Jesus, 81, nem lembram ao certo a primeira vez que participaram juntas da Lavagem do Bonfim. Fato é que, de mãos dadas, elas percorrem o mesmo trajeto todos os anos. Quando ainda faltavam mais de quatro quilômetros para chegar à Basílica do Senhor do Bonfim, não havia nem sinal de cansaço no semblante de ambas. “Éramos seis irmãos, mas ficamos só nós duas. Fazemos questão de vir para agradecer pelo ano que passou. Sempre é uma emoção inexplicável”, disse a mais velha.
O cortejo branco e perfumado das baianas seguia a imagem do Senhor do Bonfim. Com suas quartinhas e flores, elas distribuíram simpatia e passos de dança. Sandra Assis, 53, vinha logo atrás, colada na banda do Maestro Fred Dantas e acompanhando o sobrinho, que é músico. A primeira vez dela na lavagem foi em 2018. Na época, ela estava com pneumonia e realizou todo o trajeto a pé. “A promessa foi que se eu me curasse, viria todos os anos e deu certo. Se naquele ano eu mal conseguia respirar direito, hoje estou curada”, disse.
Mais ao fundo, as fanfarras animavam o público que vinha ao fundo com músicas de Carnaval. Pareciam festas diferentes, mas que se completavam na mesma medida. Sem a fé, a festa não aconteceria, mas a mistura entre o sagrado e o profano dá o toque da baianidade na medida certa. Quando a imagem do Senhor do Bonfim chegou nas proximidades do Mercado do Peixe, por volta das 10 horas, o clima já era de Carnaval. Os barulhos das latas de cerveja se misturavam com as músicas das caixas de som.
Se a tradição é continuada, também há espaço para a criação de novas práticas nas ruas da capital baiana. A italiana Pine Marsico, que é professora visitante na Universidade Federal da Bahia (Ufba), participou da festa pela primeira vez e estava encantada. “Eu estou achando tudo maravilhoso. Amo as manifestações em que multidões participam. A energia é incrível, independente da religião praticada”, falou.
Quando a Basílica do Senhor do Bonfim já era visível no horizonte, na altura do Largo de Roma, a religiosidade tomou a procissão quase por completo, como no início do percurso. O padre Edson Menezes, reitor do templo, pediu proteção à Santa Dulce e abençoou os pacientes internados no Hospital Santo Antônio, em frente às Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), como é de praxe. A multidão rezou o ‘Pai Nosso’ a ‘Ave Maria’. Foi o impulso final para a subida na Colina Sagrada, que já estava próxima.
Em entrevista a reportagem na parte final do trajeto, padre Edson Menezes falou sobre a emoção de completar o trajeto mais um ano. “A cada ano temos a impressão que o número de pessoas que comparecem aumenta”, disse. Sob o tema ‘Ao teu lado sempre unidos, somos teu povo Senhor’, a Lavagem do Bonfim foi a primeira desde que o imbróglio entre o líder religioso e a Irmandade Devoção do Senhor do Bonfim veio à tona.
Em agosto do ano passado, o cardeal Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador, decretou uma intervenção na irmandade e afastou Jorge Nunes Contreiras, então juiz da congregação. Questionado sobre os desentendimentos, padre Edson defendeu que a caminhada sagrada representa a pacificação do conflito. “Aqui, mostramos que juntos somos mais fortes”, completou.
O ponto alto de comoção foi quando a imagem do Senhor do Bonfim abençoou a multidão, diretamente da janela do templo, por volta das 13 horas. Milhares de pessoas ouviram a mensagem do reitor da basílica e saudaram a imagem sagrada. Às 14 horas, as baianas fizeram a tradicional lavagem da escadaria. Muitos fiéis se emocionaram com a demonstração de fé e a certeza de que a tradição persiste pairou no ar mais uma vez.