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'Preciso parar para vomitar': professores revelam bastidores de educação a distância


 

Metade dos docentes baianos têm impactos na saúde emocional durante pandemia, revela pesquisa que ouviu quase 10 mil profissionais no país; confira relatos

  • Priscila Natividade

Publicado em 11/07/2020 às 07:00:00
Atualizado em 21/04/2023 às 09:06:08
. Crédito: Ilustração de Morgana Miranda

“Tenho tido ansiedade, picos de pressão. Já dei aula parando para vomitar por conta da hipertensão, dores de cabeça e das náuseas que tenho tido regularmente. Muita pressão de todos os lados. Já cheguei a gravar oito vídeos por dia. Me sinto usada”, desabafa uma professora da rede particular que prefere ser identificada como Tânia*. A docente tem receio de perder o emprego.

Esgotados, preocupados e sem opções de múltipla escolha. Cinco em cada dez professores baianos estão sofrendo impactos na saúde emocional durante a crise causada pelo coronavírus, segundo a pesquisa que analisa a Situação dos Professores no Brasil na Pandemia, promovida pela Nova Escola. A organização produz há 30 anos, conteúdos sobre educação básica no país. 

O levantamento ouviu mais de 9,5 mil profissionais, entre os dias 16 e 28 de maio, por meio de questionário online. Destes, 414 são baianos. Mais de 70%  atua na rede pública e 23,67%, na rede privada.

Quando questionados sobre sua saúde emocional agora, em comparação ao pré-pandemia, os que classificaram como péssimo, ruim ou razoável, somam 56,29%, contra os que disseram que estão com a saúde boa ou excelente (39,56%). 

Outra pesquisa feita pela Nova Escola aponta que há quase dois anos antes da pandemia, os problemas causados pela saúde emocional, já tinham um impacto forte na vida destes profissionais. Transtornos como a ansiedade afetaram 68% dos educadores do país. Além disso, 28% deles afirmaram sofrer ou já ter sofrido de depressão até o período do estudo. Os quadros  mais relatados foram estresse e dor de cabeça (63%), insônia (39%), dores nos membros (38%) e alergias (38%). “Mais do que nunca, é necessário um olhar atento ao professor. Eles devem sair da pandemia com uma carga de perdas, além de cansados e  sem saber o quê, de fato, os alunos aprenderam”, analisa a gerente pedagógica da Nova Escola, Ana Ligia Scachetti.Outro dado que se destaca é referente a preparação para o ensino remoto, visto que 51,1% dos professores dizem não ter recebido formação  para trabalhar em casa. “Tenho trabalhado com o que já conhecia ou buscando o que não conhecia. Conto muito com a ajuda de colegas que dominam melhor as novas tecnologias”, afirma o professor de matemática na rede municipal, Nadison Silva. “Tem vezes, que é um sufoco”, completa. A nuvem de palavras mostra termos que mais apareceram nas entrevistas feitas pela pesquisa (Ilustração: Morgana Miranda) Medos  A presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), Rosylane Rocha, reconhece a dimensão do desgaste físico e mental dos educadores.“Isto aumenta as dores musculares, o desequilíbrio da pressão arterial, e o descontrole do diabetes. É fundamental propiciar condições favoráveis ao profissional de educação na retomada do novo normal”.Juliana Farias é professora de educação física na rede estadual, onde ensina em 13 turmas. Apesar de estar em licença maternidade, admite que tem receio do retorno presencial. “Não consigo perceber como a realidade na es cola pública será contemplada com higiene e segurança”.

No caso da professora Ana*, que pediu para não ter o nome revelado, o temor se chama desemprego. “Meu salário diminuiu para R$ 221. A escola tem feito da gente o que quer, porque precisamos do nosso trabalho”.

Diante de tantas questões, a professora de ciências naturais, Giselia Teles, só tem uma certeza: a educação não será igual ao que era. Ela ensina na rede municipal em turmas do 8º e 9º ano. “Minha carga horária de 60 horas dobrou”.

As escolas particulares aderiram ao ensino remoto para cumprimento de carga horária e  os professores ministram aulas online. Na rede pública, os docentes dão suporte aos alunos, tiram dúvidas que possam surgir na realização de atividades impressas, as que estão disponíveis nas plataformas online e no caso, da rede municipal, nas aulas exibidas pela TV Aratu.

O que dizem as escolas?  Sobre os relatos dos profissionais, a Secretaria Municipal de Educação de Salvador (Smed) disse que serão implementadas ações de apoio socioemocional e de orientação. Já a Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC) pontuou que disponibiliza psicólogos para atendimento online. O agendamento é feito pelo e-mail saudedoprofessor@enova.educacao.ba.gov.br.

O Grupo de Valorização da Educação (GVE), coletivo que reúne 60 escolas particulares de Salvador e Região Metropolitana, ponderou que os professores e demais profissionais precisam se reinventar continuamente. Outras entidades como a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) e o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado da Bahia (Sinepe-BA) também foram procurados pela reportagem, mas não se posicionaram.   

Sem segurança, os professores não voltam. É o que defende o coordenador geral da Associação dos Professores Licenciados do Brasil Secção da Bahia (APLB Sindicato), Rui Oliveira. “A maioria das escolas públicas não tem instrumentos apropriados para evitar a contaminação”. Há professores que não irão retornar, pois faleceram, vítimas da covid-19, conforme complementa a diretora da entidade, Elza Mel. “A nossa posição é a de preservação da vida”.

Lições  Só de sexta-feira (10), a pedagoga e coordenadora de uma das escolas da rede municipal, Celeste Dias, fez 80 atendimentos online de pais e alunos. “São muitas competências socioemocionais e de comunicação que precisamos desenvolver para atender bem, quem está do outro lado. Hoje a única opção que temos é o ensino remoto”.

Para a professora do curso de Psicologia da Universidade Católica do Salvador (UCSal), Denise Gersen, é preciso enfrentar o momento. A especialista desenvolve um projeto de escuta coletiva de professores em escolas do Subúrbio de Salvador e  Lauro de Freitas. Antes da pandemia, 60 educadores participaram dos encontros.“Nas reuniões online, percebo que a maioria não quer voltar para sala de aula nos próximos três meses, devido à insegurança e o risco do contágio. O caminho para enfrentar os medos está na interação,  na troca de informações e apostar na capacitação como superação”, aconselha.O coordenador de projetos da organização sem fins lucrativos Todos Pela Educação, Ivan Gontijo, ressalta a importância de reconhecer o esforço dos professores. “Muitos destes profissionais acabam carregando um sentimento de fracasso, mas eles não devem se sentir assim. Ninguém estava preparado para isso. A tecnologia é um meio. A pandemia mostrou que os professores são insubstituíveis”. 

Confira relatos dos profissionais da educação ouvidos pelo CORREIO

Qual a sua maior preocupação com relação a volta às aulas?

'Tenho me sentido escravizada' - Depoimento de Tânia*, professora da rede particular

Sou mãe de uma criança de 2 anos. Eu e meu marido estamos trabalhando home office. Tentamos dividir as responsabilidades, mas a maior parte sempre fica para mim. E por trabalhar mais que a minha carga horária normal, tivemos  conflitos graves, pensamos até em separação, por eu ter que dar uma maior atenção ao trabalho.Tenho me sentido, na verdade, escravizada, visto que a real preocupação da escola onde trabalho é somente com o financeiro, cobrando e exigindo da gente um trabalho sem nenhum suporte. Ensino em cinco turmas do Ensino Fundamental I e a escola só fala em voltar para não perder alunos. Sempre querem algo muito bom, sem analisar nossa condição, nem o que temos ou não que fazer. Tenho obrigação de dar resultados, não tenho valor como pessoa. Meu diploma e as especializações que fiz também não.  Não me vejo preparada para o retorno às aulas. Continuaremos tendo a função de ‘babá’ e, agora, no pós-pandemia, de ‘enfermeira’ só agradando os pais e cumprindo as ordens.

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Nem todos os alunos têm acesso - Nadison Silva, professor na rede municipal

Não tive formação para aulas online, pois não se esperava esta situação. Fui trabalhando com o que já conhecia ou buscando o que não conhecia, porém, a nossa escola vem se mostrando participativa e combina todas as atividades com os professores.Adquiri um novo celular com memória maior, webcam, headphone, ampliei memória do meu notebook. Tenho contado muito com a ajuda de alguns colegas que dominam melhor estas novas tecnologias. Acompanho também lives e palestras online.Ensino matemática em seis turmas na escola pública. O maior desafio nesse momento é fazer com que a maioria dos alunos, que já tem dificuldades em aulas presenciais, participem das aulas remotas tanto no ambiente digital quanto na tv.  Nem todos  têm acesso a esses meios. Uma mãe, quando me encontrou, falou sobre a excelente qualidade da cesta básica, pois está desempregada, assim como o marido. Porém, poucos alunos têm me procurado para tirar dúvidas sobre os conteúdos. A educação precisa se adequar. 

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A incerteza do retorno - Juliana Farias, professora da rede estadual

Trabalho 40 horas em 13 turmas na rede estadual como professora de educação física, porém, não estou dando aulas remotamente já que a pandemia prolongou minha licença maternidade com a suspensão das aulas.

Ainda assim, me vejo ansiosa sobre como esse processo de retomada das aulas vai acontecer. Temos vários desafios e um deles é a incerteza do retorno e de como ele se dará. Meu bebê tem só nove meses e tenho muito receio de trazer o vírus para casa, diante de uma realidade onde as salas não possuem ventilação natural e nossas turmas chegam a receber até 45 alunos.Difícil falar em isolamento social, quando muitos dos nossos alunos moram em casas bem pequenas e em ambientes violentos. Após ler sobre alguns modelos de protocolos, considero plausível a junção do ciclo 2020/2021 para garantir a permanência do aluno. Se isso não for feito, haverá fechamento de turmas e professores podem ser devolvidos a rede, ficando  a disposição para realocação em outras escolas.

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Nós não dominamos tudo - Celeste Dias, coordenadora na rede municipal

Admitir que não dominamos tudo e que temos sempre o que aprender é a maior lição desta pandemia. Mesmo diante das situações difíceis que estamos enfrentando serve como motivação, as trocas entre professores, equipe gestora e alunos da escola pública que possuem conhecimento em tecnologia. Sim, eles existem.A quantidade de vídeos, tutoriais e podcasts produzida e que circulam nos grupos  e nas redes sociais faz toda a diferença. Muitos talentos têm sido revelados - de alunos, professores e pais que quando veem alguém com dificuldade chama no privado, apoia e inclui digitalmente esses estudantes.  Sabemos dos problemas. Alguns educadores sairão exaustos por conta desta transição, outros satisfeitos diante das aprendizagens da nova concepção de educação, outros adoecidos pelo luto, confinamento e perdas financeiras. Mas as soluções só serão construídas com a participação de todos: poder público, pesquisadores, pais, alunos, escola e professores.

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Sobrecarregada, incapaz e sem valor - Lúcia*, professora da rede particular

Estudei por conta própria para atuar no ensino remoto dando aulas em quatro turmas. A sociedade em geral, não respeita o nosso trabalho. As escolas atrasam salário além de já o terem reduzido, por conta da pandemia.O professor precisa continuar com as aulas e ouvindo que não recebeu por falta de pagamento das mensalidades e ainda precisa pagar a internet, para viabilizar tudo isso, do seu próprio salário. Me sinto cada dia mais sobrecarregada, incapaz e sem valor. Eu acho que a maioria dos professores também está se sentindo humilhada. Tive uma redução de 70% do meu salário e, sinceramente, eu não sei o que é que vou fazer para diminuir esse impacto. Com o valor que a escola me paga é impossível sobreviver - só com R$ 221. Tenho outros colegas que diminuiu para R$ 195 e a direção da escola vem e diz que é melhor mesmo que a gente receba o benefício do governo. Nos submetemos a esta situação e, infelizmente, acabamos aceitando por conta de questões financeiras. Falta respeito e empatia.

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O mundo não será mais o mesmo - Giselia Teles, professora na rede municipal

Meu pai tem leucemia e, muitas vezes, tenho trabalhado no hospital enquanto ele faz o tratamento. Fico ali na capela com o celular, orientado os alunos. Não estamos lidando apenas com o estresse do distanciamento social, mas, também com o uso das novas tecnologias de ensino à distância e a precariedade das condições tecnológicas, principalmente, dos nossos estudantes.Sou professora de ciências naturais na rede municipal de turmas de Ensino Fundamental do 8º e 9º ano. Minha carga horária de 60 horas, dobrou. As incertezas são grandes. O isolamento social trouxe a necessidade de se reinventar e solidificar a tecnologia aliada à criatividade. O mundo não será mais o mesmo depois que essa tempestade passar. É tudo muito novo e inesperado. Me sinto muito preocupada e confusa diante de uma situação atípica como a que estamos passando. São novos valores, modelos de ensinar e novos hábitos. Certeza? Só a de que a educação não será igual ao que era após a pandemia.  

*Nomes trocados a pedido das professoras ouvidas pela reportagem.