História em pedaços: Iphan vistoria Convento de Santo Antônio, no Recôncavo
Convento e igreja que ficam em São Francisco do Conde estão interditados
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Raquel Saraiva
raquel.saraiva@redebahia.com.br
Imagine morar numa casa com infiltração, erosão e rachaduras, infestada por cupins e morcegos e com risco de desabamento. Agora imagine que esta casa tem o tamanho de dois campos de futebol e dezenas de obras de arte e móveis de cerca de 400 anos. Esta é a situação do Convento de Santo Antônio, em São Francisco do Conde, no Recôncavo baiano.
Ontem, o convento passou por vistoria técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ligado ao governo federal, para avaliar os danos no local, tombado pela entidade em 17 de outubro de 1941. Além da equipe do Iphan, participaram técnicos da Defesa Civil do município, membros da Comissão Salve o Convento e o frei Hermano José, que mora no local e que se recusa a sair de lá.
“O motivo de ele ter sido tombado está caindo. Estamos reunidos em prol deste bem, queremos buscar soluções”, afirma a coordenadora técnica do Iphan, Flor de Lis Dantas e Cardoso, que acompanhou a vistoria. O órgão diz não ter dinheiro para a recuperação.
O convento, antes movimentado com visitas, missas e atividades pastorais, vem desabando aos poucos. Por isso, foi interditado pela Defesa Civil do estado em 29 de novembro do ano passado.
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Dona Valdelice dos Santos, 70 anos, frequenta o local desde que era criança, cobra uma solução. “A gente precisa desse parecer técnico, porque todos veem a beleza que existe aqui, mas poucos entendem do valor patrimonial e histórico do convento e da igreja”, afirma. Ela coordena a Comissão Salve o Convento.
Valor O convento é o único da América Latina com azulejos portugueses pintados à mão que contam todos os 16 milagres de Santo Antônio. É o que explica o frei Rogério, que morou no convento entre 2009 e 2012 e voltou em fevereiro de 2017.
“O valor monetário é difícil de avaliar, mas o valor histórico e cultural é de suma importância. Não só o acervo, mas toda a estrutura, porque é parte da história de um povo”, completa. Além dos azulejos, a igreja conta com imagens sacras, altares, pinturas e móveis de alto valor cultural e histórico.
Se estivessem expostas em um museu, as peças estariam protegidas dos flashes das câmeras e do toque de curiosos. No convento, ficam expostas à ação do tempo e de animais - morcegos, cupins, formigas, e até pombos deixam rastros pelos móveis e estruturas, algumas com mais de 300 anos.
“O prédio todo tem muito valor. Vamos indicar as emergências através de um relatório, como o escoramento de algumas paredes que precisa ser feito e a remoção de tabuados do forro, que têm risco de cair”, explica Flor de Lis. Ela não determina um prazo para o relatório ser concluído, mas deve demorar - o processo envolve levantamento dos bens, que serão comparados com o inventário.
Caindo aos pedaços A igreja e o convento começaram a ser construídos em 1618. Em 1633 foram inaugurados, 64 anos antes da fundação da cidade de São Francisco do Conde, em 1697. Em 1718, outras modificações começaram a ser feitas na estrutura e as intervenções na igreja e no convento não pararam. Os altares originais foram removidos, mas a parte externa continua intocada.
É impossível andar pelo local sem pisar em rachaduras e depressões no andar térreo, onde o piso é de ladrilho hidráulico. Na sacristia, o piso afundou cerca de 30 centímetros em algumas partes, comprometendo as paredes revestidas de azulejos portugueses e galerias de cupins.
“No claustro do convento, considerado um dos mais bonitos do Brasil, o mato aparece onde antes havia plantas ornamentais e muitas espécies de peixes”, lembra Bernadete Primo, membro da comissão. Ao subir para o primeiro andar, uma recomendação é repetida: “Andem próximo à parede, onde o piso está mais firme”, dizem os representantes da Defesa Civil do município.
O piso de madeira, com fissuras e tábuas soltas, treme a cada passo, como se fosse ceder. Uma brisa faz toda a sala de coro ranger. Faltam algumas tábuas no teto de madeira, que tem pintura - hoje empoeirada e desbotada - atribuída a José Joaquim da Rocha, o mesmo que pintou o forro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador. Outras tábuas estão dilatadas, em decorrência de infiltrações.
“O que eu acho mais grave, e o que é mais custoso no restauro, é a pintura que temos no forro, que data do final do século XVII e início do XVIII”, conta o engenheiro civil do Iphan Luis Cláudio Vargas. A torre da igreja não pôde ser visitada, em decorrência do mau estado da escada de acesso.
O cenário visto ontem foi o que motivou a comunidade a tentar salvar o convento. No dia 8 de dezembro do ano passado, 24 frequentadores da igreja se reuniram com os freis e colheram 6.816 assinaturas para cobrar uma visita do órgão. “O convento é a história desse povo. É muito emocionante ver a população se reunir para não deixar a própria história cair”, diz frei Elias, da Ordem dos Frades Menores.
Iphan critica intervenções Em muitos cômodos do conjunto, a estrutura original foi modificada. No refeitório - um dos cômodos mais comprometidos -, o assoalho e os pilares de madeira foram trocados por concreto. As novas colunas, no entanto, não têm estrutura para sustentar o peso extra da nova laje, como explicou o engenheiro civil do Iphan, Luis Cláudio Vargas, durante a vistoria realizada ontem.
“Foram feitas mutilações em um bem tombado. A parte do convento onde a estrutura de madeira foi suprimida e foi criada uma estrutura independente de concreto armado, com laje pré-moldada, gerou a degradação que, hoje, tá com risco evidente de colapso. Não se deve promover obras sem um responsável técnico, seja engenheiro ou arquiteto, para que isso não gere danos irreversíveis”, afirmou o engenheiro.
Luis Carlos ressalta que as modificações feitas em bens tombados devem ser comunicadas e orientadas pelo Iphan. “Acham que temos a obrigação de restaurar e consertar, mas o que o Iphan tem, definido por lei federal, é o poder de fiscalizar. A obrigação de manutenção é do proprietário do imóvel.”
De acordo com a Arquidiocese de Camaçari, o convento e a igreja são de propriedade da congregação da Ordem dos Frades Menores. Frei Elias, representante da congregação, conta que poucas ações efetivas foram tomadas pelo instituto federal em resposta às solicitações dos franciscanos.
“Sempre entrávamos em contato com o Iphan, mas toda vez que queríamos fazer uma melhoria era um processo demorado. As obras foram feitas para que o convento não caísse, como está caindo agora”, diz o frei, que começou sua vida religiosa no convento, em 2009.
Durante a vistoria, Bernadete Primo, membro da comissão, conta que as visitas do Iphan só começaram a acontecer recentemente. “A gente nunca recebia ninguém!”, reclamou ela. A coordenadora técnica do Iphan, Flor de Lis, explica que uma nova resolução do órgão estabelece que visitas anuais devem ser feitas em todos os bens tombados.
*com supervisão da editora Clarissa Pacheco