Entrevista: ‘É preciso estabelecer limite à exploração da água subterrânea na Bahia’
No Dia do Meio Ambiente, presidente do Comitê do São Francisco se preocupa com poços clandestinos para irrigação no oeste baiano
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Alexandre Lyrio
alexandre.lyrio@redebahia.com.br
Dois anos depois de anunciar um plano nacional de revitalização do Velho Chico, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) diz que pouco se avançou na questão. O alívio veio mesmo da natureza. Um período úmido entre novembro e dezembro de 2017 melhorou um pouco o volume dos reservatórios. Mas, após anos dramáticos de seca, estado e sociedade civil precisam agir.
O presidente do CBHSF, Anivaldo Miranda, diz que a situação está muito aquém do ideal e que a crise do Rio São Francisco está muito mais atrelada a problemas de gestão do que dos próprios ciclos naturais. “Água no Brasil, tem! O problema é a exploração desregulada dessa água”.
Uma dessas formas de exploração, diz Anivaldo, ocorre na Bahia. Durante entrevista coletiva que abriu as comemorações do Dia Nacional em Defesa do Rio São Francisco (03 de Junho), ele criticou a expansão das fronteiras agrícolas no oeste baiano e a perfuração de poços de irrigação no aquífero de Urucuia. “A maior parte é clandestina”.
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O problema com as águas subterrâneas na Bahia estaria comprometendo a vazão afluente à Hidrelétrica de Sobradinho no período de estiagem. Em Aracaju, no lançamento da campanha Eu Viro Carranca para Defender o Velho Chico e do II Simpósio da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco,
Anivaldo também cobrou a implementação do plano nacional que, desde 2016, calcula em R$ 30 bilhões o valor necessário para revitalizar o Rio São Francisco em dez anos.
No Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado nesta terça-feira, dia 5, o CORREIO destaca a entrevista de Anivaldo Miranda. Confira:
O comitê afirma que o Rio São Francisco não enfrenta exatamente uma crise de escassez hídrica, mas de gestão. Por que?
Porque água o Brasil tem! Mesmo na região Nordeste, que só tem 3% da disponibilidade hídrica do país. Mas, não estamos sabendo gerir isso. O Rio São Francisco é responsável por 70% da disponibilidade de água do Nordeste e ainda atende ao norte de Minas Gerais. Diante dessa importância, precisamos regulamentar e fiscalizar sua exploração sob pena de perder essa dádiva. Precisamos tratar o rio com enorme carinho, precisamos tratar como ele é conhecido: ‘o rio da integração nacional’.
Em 2016 vocês aprovaram o Plano de Recursos Hídricos da Bacia do São Francisco. O que ele prevê e qual o investimento necessário para revitalizar o Rio São Francisco?
Fizemos um plano sólido para a bacia como um todo. Reunimos mais de seis mil pessoas em oficinas, audiências públicas, reuniões em cada um dos seguimentos e produzimos um extenso diagnóstico socioambiental e todo um planejamento sobre como recuperar a bacia. O caderno de investimentos calcula em R$ 30,8 bilhões o valor necessário para, em 2026, o Rio São Francisco, de fato, chegar em uma situação estável. Como se calcula isso? O caderno aponta diversas fontes e ações. Fizemos consultas a orçamentos de estados, municípios e união, aos planos estaduais de desenvolvimentos de recursos hídricos e outras fontes.
O senhor acha esse plano viável e ele seria aplicado de que forma?
Em requalificação de aquíferos, combate à erosão e ao assoreamento, melhoria da qualidade da água, recomposição de mata ciliar, na gestão da água subterrânea, fiscalização, pesquisa. O valor é uma referência. Se a gente não pode cumprir ele 100% a gente se propõe a isso. Alimentamos essa utopia porque a gente precisa sair do lugar. O Governo Federal vivia alardeando que existia dinheiro para a bacia, mas que não existia projeto. O comitê está fazendo a parte dele. Esse não é um plano para o comitê. É um plano para todos os que estão envolvidos na bacia. Por isso entregamos para cada ente da bacia. Levamos para o Governo Federal, para os ministros da Integração e Meio Ambiente, entregamos para as agências de desenvolvimento, secretarias de recursos hídricos e meio ambiente dos estados, para as companhias de abastecimento de água, para as federações das indústrias, sindicatos rurais. Entregamos aos senadores e deputados, entregamos às instituições de ensino. O país precisa se apossar desse plano. Até à ONU (Organização das Nações Unidas) entregamos.
O comitê entraria com alguma parcela dessa verba?
Nas diretrizes do plano, o comitê pretende aplicar R$ 550 milhões através da cobrança do uso da água do rio. Essa cobrança já existe, mas é um sistema que nós queremos ampliar e sofisticar. Um dos nossos desafios é fazer o recadastramento de todos os usuários da calha do São Francisco. O cadastro hoje é incompleto e queremos identificar quem são os que captam água. Grande parte, claro, está abaixo da linha de corte que permite isenção pelo uso da água. A partir de quatro litros por segundo, as pessoas e empresas já devem pagar por esse uso. É um valor muito abaixo do que se paga pela água tratada das cidades, por exemplo. Mas, é um valor muito importante. É um recurso que volta para a bacia, usado em ações institucionais e projetos hidro ambientais de abastecimento humano, além de pesquisa e planejamento.
De quanto seria a ampliação da cobrança? Quanto vocês arrecadam hoje e quanto passariam a arrecadar?
Estamos avançando muito nessa questão. No mês de julho, possivelmente, teremos o nosso pedido de atualização da cobrança aprovado, o que aumentará de forma razoável os recursos. Hoje, arrecadamos R$ 22 milhões. Seguramente esses R$ 22 milhões passarão a ser entre R$ 28 milhões e R$ 30 milhões anualmente. Se você multiplica por R$ 10 anos são R$ 300 milhões. Ou seja, precisamos arrecadar mais para cumprir nossa meta. Vamos nos empenhar e buscar parceiros para isso.
Há dois ou três anos o reservatório de Sobradinho estava com um volume útil (que faz os geradores funcionarem) muito reduzido e quase chegava ao volume morto. A situação de seca ano após ano era dramática. E hoje?
A situação dos reservatórios melhorou um pouco nesse período úmido entre novembro e dezembro de 2017. Isso permitiu uma elevação do nível útil. Há um certo alívio, mas isso não quer dizer que o reservatório tenha se recuperado. Porque a partir de agora teremos o período seco, as chuvas na cabeceira, em Minas, só começam em novembro e dezembro novamente, e até lá é possível chegar com certa segurança. Se houver uma boa gestão e se 2019 for bom, isso pode fazer com que a gente entre em um curso de recuperação dos reservatórios. Sobradinho é o grande pulmão que regulariza as águas a partir do submédio e do baixo São Francisco. Então, todos nós de certa forma somos dependentes do que ocorre em Sobradinho.
Sobradinho depende também do que ocorre no Aquífero de Urucuia, no Oeste da Bahia. Como se encontra o uso das águas subterrâneas dessa região?
No período seco, que vai de março a abril e outubro e novembro, o escoamento de base do São Francisco depende do que ocorre no Oeste da Bahia, no Aquífero Urucuia. Só que a expansão desordenada da fronteira agrícola naquela área para grandes plantações de soja e milho está provocando a diminuição da vazão de base no tempo de estiagem. A maior parte dos poços ainda é clandestina. Não há controle sobre o número e muito menos sobre a intensidade de exploração em cada poço. O que temos certeza é que o escoamento de base está em processo de declínio. A vazão afluente a Sobradinho está comprometida. É preciso se estabelecer um limite à exploração da água subterrânea na Bahia. Não temos nada contra ampliar a produção. Mas isso tem que ser feito de forma sustentável. Alguns calculam que faltam 100 m3 por segundo de vazão, outros calculam um déficit de 400 m3 por segundo na vazão afluente à Sobradinho.
Mais uma vez, este não seria um problema de gestão? De que forma o governo da Bahia enfrenta essa questão?
O poder econômico tem que ser fiscalizado. Os estados, não só o da Bahia, precisam criar sistemas de outorgas mais precisos. Nosso sistema de outorgas hoje são dados no escuro. A tutela dessas águas é absolutamente difusa. Recentemente, na cidade de Correntina, ocorreu um conflito entre agricultores por conta do uso da água do aquífero. É uma crise de governança. O caso do aquífero Urucuia é emblemático. Mas, há outros exemplos na Bahia. Na cidade de Lapão, o uso das águas subterrâneas por perfuração tem sido tão intensa que o solo virou um queijo suíço. Você já tem rebaixamento de solo em Lapão. O comitê está financiando um estudo geológico com a prefeitura local. A população está assustada. Casas com rachaduras, fendas no solo dentro da cidade.
É preciso conhecer mais tecnicamente esses aquíferos?
Quando você dá outorga de direito do uso de águas superficiais é possível medir a vazão por segundo. Mas, quando se trata de um aquífero, quando se trata de águas subterrâneas, fica complicado de aferir. O conhecimento que se tem dos aquíferos hoje é muito aquém do desejável para que se possa construir sistemas de outorgas do uso das águas subterrâneas. A forma de explorar tem que seguir uma estratégia. Sobre o aquífero de Urucuia, por exemplo, não há uma opinião técnica conclusiva. A ANA (Agência Nacional das Águas) diz que está fazendo um estudo e a associação dos irrigantes da Bahia anunciou uma parceria com a Universidade de Viçosa e Nebraska.
Qual é o real papel do comitê dentro desse processo de revitalização e gestão das águas do Rio São Francisco?
O Comitê é algo novo, um trabalho de articulação institucional da bacia. Juntamos diversos seguimentos no sentido de trocar ideias, experiências e ações conjuntas na gestão dos recursos hídricos. Não somos ONG, não somos governo chapa-branca, não somos empresas, mas ao mesmo tempo somos isso tudo. Porque dentro dos comitês estão todos representados. É um grande colegiado com 62 instituições titulares e 62 suplentes. Dentro do comitê há todos os usuários da água representados. Tem os irrigantes, os navegantes, os agricultores, a indústria, a mineração, as instituições de pesquisa, as universidades. Somos um enorme comitê, assemelhando-se aos grandes comitês transfronteiriços do mundo, como no Ganges (Índia) e o Nilo (Egito). Mas não fazemos só articulação. Também desenvolvemos projetos e investimos nas comunidades.
Qual o grande desafio de vocês?
O CBHSF quer um pacto das águas e da gestão. A gente sabe que cada estado respectivo tem planos para suas bacias estaduais, mas é preciso que a vazão que chega a calha do São Francisco, em todas as épocas, nas épocas adversas ou não, seja definida em conjunto. É preciso universalizar os instrumentos da gestão da água. Mais sistemas de monitoramento, mais planos de bacias, mais estações meteorológicas, uniformização das outorgas, tudo funcionando de forma integrada. Só assim você poderá de fato fazer um planejamento para a bacia como um todo. Tem que planejar o jogo. A Bahia precisa saber o que Minas quer e Minas precisa saber o que a Bahia quer. E assim os outros estados.
Esse pacto das águas envolveria uma diversificação da matriz energética, com o investimento em outras formas de gerar energia?
Sim, precisamos transformar a nossa matriz energética. Os nossos reservatórios de água não podem ser usados só para geração de energia. Já esgotou! Cadê o investimento em energia eólica? Cadê o investimento em energia solar? O Rio São Francisco não pode ser usado só para gerar energia, mas também deve ter respeitado os seus usos múltiplos, para a pesca, a navegação, a agricultura, o abastecimento das comunidades ribeirinhas. Isso serve para Xingó, Sobradinho, Itaparica, Paulo Afonso, todos.
Saiba Mais: Bacia do São Francisco
A Bacia do Rio São Francisco abrange 507 municípios em seis estados (Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas) e o Distrito Federal. Ocupa em torno de 8% do território nacional.
“São mais de 650 mil quilômetros quadrados. Não é fácil você articular todas as ações em uma bacia deste tamanho, que atinge direta e indiretamente cerca de 18 milhões de pessoas. Mas a gente tenta fazer isso e temos esse compromisso”, diz Anivaldo Miranda.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco é um órgão colegiado, integrado pelo poder público, sociedade civil e empresas usuárias de água, que tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia, na perspectiva de proteger os seus mananciais e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável. Para tanto, o governo federal lhe conferiu atribuições normativas, deliberativas e consultivas. O comitê faz parte do Sistema Nacional de Recursos Hídricos, estabelecido pela Lei Nacional de Recursos Hídricos 9433, que completou 20 anos de existência.