Entenda o conflito de terras envolvendo indígenas e fazendeiros no sul da BA
Na quarta-feira (17), um juiz federal deferiu uma liminar em favor de um proprietário rural
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Da Redação
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O clima está tenso na região das aldeias localizadas no território indígena Barra Velha, no município de Porto Seguro, no sul do estado. Desde segunda-feira (15), os povos originários denunciam que homens armados cercaram as aldeias de Boca da Mata e Cassiana por conta de disputas de terra. Durante o conflito, indígenas correram para a mata e se esconderam. Na quarta-feira (17), um tiroteio deixou dois homens feridos, depois que um grupo de indígenas ocupou uma fazenda na região. A Justiça deferiu uma liminar em favor do proprietário.
A área em questão é identificada e delimitada como território indígena pelo governo federal desde 2009, mas lideranças indígenas afirmam que o local sempre esteve sob ameaça de fazendeiros que praticam a pecuária e o cultivo de café na região. A tensão aumentou entre os dias 12 e 18 de junho, quando um grupo de mais de 100 pessoas da etnia Pataxó retomou uma área denominada como Fazenda Brasília.
A partir daí começou uma disputa fervorosa entre os dois grupos, e a Aldeia Pataxó Cassiana foi atacada no dia 18 de julho. “Nós denunciamos tudo isso ao Ministério Público, governo do estado e Ministério da Justiça, mas nada foi feito. No dia 18, o mesmo pessoal que já tinha feito o cerco invadiu a Aldeia Cassiana. A Polícia Federal (PF) foi ao local ouvir as lideranças e fez um relatório circunstancial”, conta Agnaldo Pataxó, coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).
Na quarta-feira (17), o juiz federal Pablo Enrique Carneiro Baldivieso, da Subseção Judiciária de Eunápolis, deferiu uma liminar favorável ao proprietário da Fazenda Brasília, alegando risco de iminente invasão no imóvel rural. Na decisão de interdito proibitório, o juiz afirma que a Fundação Nacional do Índio (Funai) reconhece que a área está totalmente inserida na terra indígena Barra Velha do Monte Pascoal.
Mesmo assim, o juiz decidiu que a Comunidade Indígena Pataxó deve se abster de realizar atos concretos de invasão da fazenda de Espólio de Pedro Alcântara Costa, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
Emerson Pataxó, integrante da Associação de Jovens Indígenas Pataxó (Ajip), critica a decisão tomada pelo juiz e afirma que uma equipe jurídica está articulando para derrubar a liminar. “A gente sabe que esse juiz sempre, em suas decisões, foi contrário às pautas indígenas e favorável ao agronegócio. Muitas pessoas que estão lá já estão fugindo e nós, enquanto liderança, estamos tentando articular um apoio de proteção aos parentes do território de Barra Velha”, diz Emerson Pataxó.
Agnaldo Pataxó afirma que o povo vai continuar lutando pelo território e defende a resistência do grupo. “Nosso pessoal vai manter a resistência porque essa é uma área nossa, que foi identificada e delimitada desde 2009. O pessoal [invasores] está encostando e se aproximando das Aldeias de Boca da Mata e Cassiana e apertando o pessoal. Precisamos expulsá-los ou a Justiça precisa tomar alguma providência porque do jeito que está não tem condição nenhuma”, afirma a liderança.
De acordo com os povos originários, o grupo que vem ocupando o território é formado por fazendeiros, posseiros e milicianos. Informações iniciais apontam que dois policiais militares, que trabalham como segurança para fazendeiros, foram os feridos no conflito de quarta-feira (17). Um dos PMs seria da reserva e outro seria da ativa, mas estava de folga. Os dois foram levados para um hospital da região e já tiveram alta médica.
O conflito tem dificultado o dia a dia do povo Pataxó da região, como conta Ãwãnuk Pataxó, uma das lideranças da Aldeia Cassiana. De acordo com ela, tem sido preciso atravessar um rio para obter suprimentos. Para ajudar, a jovem indígena tem utilizado as redes sociais para divulgar os registros feitos na sua comunidade, com o intuito de obter auxílio. “Estamos dormindo debaixo de lona porque derrubaram nossas casas”, diz. Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas denuncia que casas foram destruídas (Foto: Divulgação Mupoiba) O que dizem as autoridades Em nota, a PF informou que visitou a região e que não foram encontrados agressores, veículos suspeitos ou munição. A Polícia afirmou ainda que recomendou ao Ministério Público Federal (MPF) que, em ofício ao Comando local da Polícia Militar, orientasse a tropa a não tomar partido no conflito local. Procurado, o MPF informou que tem acompanhado os conflitos fundiários no sul do estado e que abriu inquérito para apurar a situação.
“No momento, o MPF mantém contato constante com as autoridades responsáveis para apurar a situação, evitar novos conflitos e buscar a segurança das comunidades indígenas”, pontuou. Sobre a legalidade da reivindicação do território, o Ministério Público se limitou a afirmar que cada ação judicial que possa envolver territórios reivindicados por indígenas é analisada individualmente.
Já a Polícia Civil, disse que os dois homens que faziam a segurança particular de uma fazenda deram entrada no Hospital Municipal Frei Ricardo na quarta-feira (17), mas já receberam alta. Disse ainda que as investigações estão sendo realizadas pela 23º Corregedoria Regional de Polícia do Interior (Coorpin/Eunápolis).
Procurada, a prefeitura de Porto Seguro, onde está localizado o território Barra Velha, informou que o conflito é uma demanda de segurança pública de competência da Polícia Militar, Polícia Federal, Funai e Ministério da Justiça.
História A antropóloga Anna Kurowicka chama atenção para a criticidade do drama vivido pelas comunidades do povo Pataxó. Em sua visão, a questão das retomadas dos territórios pelos povos indígenas ao longo do país surge em uma contrapartida à omissão do Estado.
“O Estado tem o poder, as competências e os meios para garantir os direitos territoriais dos povos originários. Enquanto isso não acontece, os Pataxó e outros povos vêem como única a solução de retomar as suas terras, se encorajando a enfrentar a resistência dos grupos de interesse que atuam em suas terras, como os fazendeiros e as empresas de eucalipto, no caso específico dos Pataxó”, explica.
Lideranças ouvidas pela reportagem temem que um episódio trágico ocorrido em 1951 se repita no mesmo local. Na ocasião, indígenas de Barra Velha tiveram suas casa incendiadas, foram torturados e mortos pela polícia local e ao menos 38 indígenas foram presos.
“O que se teme é que ocorra um novo de 51, que foi um massacre que matou centenas de nossos parentes do nosso povo. O que vemos agora são policiais que atuam na defesa desses fazendeiros”, afirma Emerson Pataxó. Procurada, a Polícia Civil não confirmou que haja oficiais envolvidos na segurança dos fazendeiros.
*Com orientação de Monique Lôbo e colaboração de Larissa Almeida.