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Dendê, ouro da Bahia: mais do que um óleo, elemento ancestral enfrenta crise


 

CORREIO faz especial sobre falta do azeite de dendê, alimento dos orixás, ingrediente de diversas iguarias e símbolo da baianidade

  • Alexandre Lyrio

Publicado em 15/08/2020 às 06:00:00
Atualizado em 21/04/2023 às 12:01:04
. Crédito: Foto: Ayrson Heráclito/Obra Barrueco colar/Divulgação

Foto: Ayrson Heráclito/Obra Barrueco colar/Divulgação Laroyê, Exu! Não custa pedir permissão para aquele que vai na frente de tudo, o que abre os caminhos. Orixá da fertilidade, é a ele que pertence o dendê. Na mitologia iorubana, o óleo de palma é o seu esperma, seiva da reprodução, metáfora do sexo, a força vital. Mas o dendê também é o amarelo de Oxum, o fogo de Xangô, o brilho dourado de Omolu. O dendê é, enfim, o ouro da Bahia. 

Como se vê, o óleo de palma não é da ordem do humano, mas das divindades. Por mais que falte na nossa mesa o sangue dos dendezais, seremos sempre a terra do dendê. Nenhuma crise é capaz de destruir esse traço de ancestralidade. Afinal de contas, diversas iguarias que o têm como ingrediente são destinadas aos orixás. Preparadas em rituais mágicos, são ofertadas aos deuses de matriz africana, seja do Candomblé ou da Umbanda. “O óleo de palma é muito mais do que um ingrediente culinário. É um traço diferenciador, uma marca de identidade de origem africana”, afirma a antropóloga Maria Paula Adinolfi. Aos homens também é dado o direito de saborear o azeite, mas ele estará sempre ligado ao sagrado. “Mesmo quando não tem uma vinculação direta com a religiosidade, ainda assim ele é um traço muito distintivo da baianidade”, diz Maria Paula. Mas não são todas as entidades que gostam de dendê. Os chamados orixás “funfun”, que se vestem de branco, não se relacionam com o óleo extraído da palma. Oxalá, que teve uma quizila com exu, é o principal deles. Ele não come, por exemplo, a boa e velha farofa de dendê, presente no padê de Exu, obrigatório no início de todos os rituais. O dendê se torna então um símbolo que divide o panteão dos deuses do Candomblé entre os que têm ou não vínculo com o óleo.

Mesmo sabendo disso, mesmo cientes de que os orixás estão trabalhando para que não nos falte o mel do fruto sagrado, os que estão à frente das cerimônias não deixam de se preocupar. O receio maior é com suas vidas espirituais.“Dentro do culto o azeite é sangue. Sem o azeite, fica difícil fazer as oferendas. Precisamos do azeite para a nossa sobrevivência espiritual. Quando a gente evoca Exu, a gente usa a cachaça e o dendê. Assim como os eguns. O dendê é vital!”, ensina Miguel Roque Filho, ojé Sobalodju Olukotun, do Terreiro Tuntum, que fica na Ilha de Itaparica, região com muitos dendezais."Eu comprava azeite de um rapaz aqui que ele mesmo fazia em casa. Comprava mais caro, de qualidade. Mas ele sumiu", lamentou Miguel Roque, sem deixar de se preocupar também com as iguarias que costuma preparar. “Moqueca sem dendê não é moqueca. Uma moqueca de peixe, de marisco ou de crustáceo sem um dendê não é moqueca. Pode mudar de nome”, afirma Miguel. “Você já viu um peixe fresco deitado no azeite de dendê? Misericórdia, dá até água na boca”.

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"Esse é um momento preocupante porque o dendê alimenta uma cultura. É o que dá vida à nossa cozinha. Tanto a cozinha afro-católica quanto a cozinha mundana. É um elemento idiossincrático que traduz a nossa ideia de baianidade, alimenta um mercado consumidor e sustenta famílias inteiras", pondera Elmo Alves, chef de cozinha, professor de gastronomia, historiador e babalorixá do terreiro Ilê Asé Tòlorí Jàgún Ejí Egbé.   

O dendê pertence especificamente a uma variedade de Exu conhecida como Exu Elepô, a quem o antropólogo Raul Lody dedica o livro Tem Dendê, Tem Axé. Exu Elepô é “o dono do dendê”. Em sua publicação, Lody confirma que é impossível desvincular as comidas com azeite da sua ancestralidade religiosa. “Quando ingerimos os alimentos feitos com o óleo derivado do dendê, estamos também, de alguma maneira, partilhando dos frutos das culturas africanas reinterpretadas em nosso país”, escreveu.  Foto: Ayrson Heráclito/Obra Ofá/Divulgação “A Bahia só é a Bahia com dendê”, resume Dadá Jaques, fotógrafo, mestre de capoeira e obá de Xangô do Terreiro Aganju. Dadá comanda o grupo Dendê de Aro Amarelo. O nome é a representação do que se pode extrair de melhor do óleo. “O aro amarelo é o que chamamos também de a flor do dendê, que é o dendê mais puro, mais valoroso. Nosso grupo traz no nome essa identidade ancestral. A ideia é oferecer o que temos de melhor para nossa comunidade, o aro amarelo do dendê, nossa riqueza maior, nossa ancestralidade”.

Também não tem como desvincular a vinda do dendê para o Brasil com a chegada dos negros escravizados. É por isso que o ogã e artista visual Ayrson Heráclito buscou essa referência em algumas das suas obras e instalações. Ayrson, autor das imagens que ilustram esse texto, pesquisa o dendê desde a década de 1990, quando pensou no conceito de corpo cultural afro-diaspórico a partir de materiais representativos dessa cultura. Depois de trabalhar com açúcar e carne de charque, o dendê aparece justamente como o sangue, o fluido vital que atravessou o Atlântico com os africanos escravizados. "Esse sangue cultural atravessou o Atlântico com os navios negreiros e hoje oxigena esse corpo cultural que resiste no Brasil", reflete Ayrson.