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'Trump não tem muita margem para crescer, diferente de Kamala', diz professor


 

Momento da entrada da atual vice na corrida presidencial também foi importante

  • Thais Borges

Publicado em 04/08/2024 às 11:00:34
Kamala Harris vai enfrentar Donald Trump. Crédito: Shutterstock

Kamala Harris entrou por último na disputa pela presidência dos Estados Unidos, mas tem atraído as atenções. A avaliação do professor Henrique Oliveira, doutor em Ciências Sociais, docente do mestrado em Administração e do programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano da Unifacs, é de que ela ainda tem margem para crescer.

Depois de estar em baixa nos últimos anos, pela atuação na questão migratória no país, a atual vice-presidente está em uma nova fase. “Trump, mesmo com o tiro, já apresenta um eleitorado saturado. Mesmo com a comoção que o atentado gerou, não tinha muita margem para crescer. Bem diferente de Kamala Harris”, pontua ele.

Confira a entrevista na íntegra

O que afetou a popularidade de Kamala nos últimos quatro anos, em especial com os swing states (estados pêndulo)? Que pautas foram essenciais para a queda da popularidade entre os americanos?

Os swing states são os estados que oscilam entre democratas e republicanos e são decisivos nas eleições dos EUA. Há estados historicamente mais definidos, como a Califórnia para os Democratas e o Texas com os Republicanos. Lá, as eleições são diferentes. O resultado por cada estado faz parte da contagem dos votos e é uma mistura de distrital com majoritário. Aqui no Brasil, a decisão pelo executivo federal é majoritária simples, uma concepção mais recorrente nas democracias mais jovens, como a nossa. Isso também tem uma relação com o histórico dos EUA de transição de confederação para federação que precisou guardar significativa relevância da unidade subnacional dos estados e até dos seus condados, algo equivalente a seus municípios aqui.

Muitos desses Swing States estão na região dos Rusty Belt States, estados nos quais boa parte do eleitorado é de trabalhadores industriais, sobretudo, da indústria automobilística - por isso ‘rusty’, de enferrujado. Os sindicatos dessas indústrias são grupos políticos intensos e bem organizados com forte participação eleitoral. Com a fragmentação global da produção, entre o final do século passado e o início desse, muitos perderam seus trabalhos e culparam as políticas dos democratas (Clinton e Obama) pela liberalização comercial. Enquanto isso gerou maior atração de capital financeiro para os EUA, devido à expansão global de suas empresas, os postos de trabalho foram transferidos, sobretudo para a Ásia. Isso trouxe, em si, uma desconfiança que afetou os democratas como um todo. E (Donald) Trump soube explorar bem isso nas eleições em 2017 com o slogan Make America Great Again - Faça a América ser Ótima Novamente.

A eleição de Biden foi direcionada para atender justamente a essas reivindicações de manter e criar novos postos de trabalho, melhorar as condições econômicas e segurar as imigrações. Biden é um democrata com um perfil mais conservador, como a sua proposta de lei de repressão ao crime. Kamala Harris foi colocada como vice justamente por ter aderência ao discurso da representatividade, aderente ao de Obama, mesmo não sendo ela tão progressista assim. Mas naquele momento era ainda muito arriscado colocá-la como candidata e Biden ainda não estava na situação de debilidade que se apresentou no último ano. Harris teve um papel importante em mobilizar eleitores com o perfil de rejeição a Trump, como mulheres negras, universitários e jovens.

Harris foi bastante criticada interna e externamente pela condução da política migratória nos EUA. O país tenta conter a migração, sobretudo, de latinos. É uma demanda que tem implicação sobre o Rusty Belt, já que é um eleitorado preocupado com postos de trabalho, mesmo não tendo relação explicativa entre imigrantes e desemprego. Ela foi criticada internamente porque não conseguiu conter a imigração de latinos, tal como a opinião pública dos EUA esperava. Lembrando que Harris é filha de imigrantes, mãe indiana e pai jamaicano, ambos pesquisadores e professores universitários. Ela, sem romper com uma política migratória de contenção, até vem buscando uma abordagem diferente, mas não nova, de cooperação técnica e financeira a países com significativo fluxo migratório para os EUA. Mas esse ponto já impactou o que tinha que impactar, não acredito que tenha muita margem para interferir significativamente no resultado.

Harris é conhecida por uma trajetória como procuradora geral da Califórnia contrária à pena de morte com críticas às condições prisionais e a favor da reforma penal, a favor do casamento gay, reforma da política migratória, combate ao crime financeiro e descriminalização da maconha. Também teve uma atuação como senadora pela Califórnia combativa a Trump. Em 2020, concorreu às prévias contra Biden com uma agenda mais progressista apoiando a legalização da cannabis recreativa, redução de imposto da classe média, defesa do Acordo de Paris e sistema de saúde universal.

Como Kamala foi vista, nesse mesmo período, pelos líderes de outros países? É possível mensurar o peso que ela tinha/tem como vice-presidente na condução dos EUA?

O confronto Harris e Trump simboliza o que o próprio Ocidente passa: uma disputa entre um paradigma progressista preocupado com a sustentabilidade e representatividade, que guia o mundo corporativo globalizado nesse século; e do outro, o paradigma reacionário com contorno fascista que busca restaurar valores e privilégios que também foram a base para o domínio ocidental como protecionismo e segregação étnico-racial.

Sendo assim, a comunidade internacional e dentro de cada país vem sendo clivada nesse sentido em momentos decisivos como eleições. O que se vê nos EUA está presente em quase todos os países do ocidente. Logo, a forma como um líder de um país ou de outro a vê perpassa por essa disputa.

Já os líderes do bloco oriental de países que estão em disputa direta com os EUA, como Rússia e China, têm outras preocupações em relação a ela. Aqui, não saberia dizer se líderes como Putin e Xi Jinping teriam muito que falar porque ela não ficou muito à frente do Departamento de Estado, algo correspondente ao Ministério de Relações Exteriores, que é até comum passarem para vice-presidentes que almejam a presidência. É ou era uma pasta bem disputada pelos membros dos governos. Mas, recentemente, como os EUA vêm perdendo relativamente seu poder dentro do atual contexto de disputa geopolítica, talvez tenha sido uma decisão acertada ela não ter assumido essa posição.

Já os países latinos devem ficar reticentes como sempre. Estamos na zona prioritária de influência. Seja democrata ou republicano, a política de garantir essa influência segue. O que altera é a forma como é conduzida. Com os republicanos, é mais ríspida e com mais chances de amplificar a instabilidade, como no caso da Venezuela. Com os democratas, é mais diplomático com a predominância de acordos e sinalizações de vantagens ou desvantagens nos âmbitos técnico, econômico e comercial.

Vimos uma mudança rápida nos discursos a respeito dela, assim que Joe Biden saiu da disputa presidencial. Cresceram as doações e ela ficou ‘pop’ entre as gerações mais novas. O que pode estar por trás dessa mudança? Qual é a imagem que Kamala tem hoje, entre americanos e também diante da comunidade estrangeira?

É importante destacar que em democracias de massas, as pessoas comuns não se sentem motivadas a votar. Não é visto como um direito cívico e sim somente a parte do dever. Geralmente quem tem mais disposição são pessoas engajadas na política, como militantes de um partido e sindicatos. Portanto figuras como Trump, com forte apelo carismático em tempos de redes sociais, sob baixo controle social e público, tornam-se ótimos candidatos porque mobilizam, seja com notícias falsas ou o discurso de ódio aderente a um contexto de precarização do trabalho, desemprego e inflação.

Nesse sentido, Kamala Harris oxigena a campanha. Tira Biden, sob uma percepção de frágil, para uma mulher negra procuradora, bem sucedida, com ótima oratória e defensora de uma pauta vista como mais progressista.

Como ela mesmo colocou no seu primeiro discurso, ela está acostumada a lidar com figuras como Trump. Em termo simbólicos e no inconsciente coletivo, qual a mulher negra não se projeta nela a possibilidade de enfrentar e vencer um bilionário branco com acusações de assédio sexual, racismo e contravenção fiscal? Harris traz consigo fatores importantes para a mobilização da base democrata e ainda captura aquelas que vão votar, seja por projeção ou por ela passar segurança na fala e sua impressionante história de vida de família de imigrantes que ascende devido a sua formação educacional formal. É uma história de uma mulher, mãe, negra de pais imigrantes que venceu nos EUA. Isso também contribui para retomar e ampliar as doações para a campanha democrata.

O que essa nova imagem pode nos fazer esperar do futuro, caso ela vença as eleições?

Os EUA vão seguir tentando manter sua posição de líder dentre as potências globais. Com isso, vão continuar com uma política externa cheia de contradições com o discurso de arauto da democracia e do mundo livre, enquanto apoiam regimes ditatoriais, seguem com políticas comerciais protecionistas, promovem intervenções em países com fraca institucionalidade e importâncias geoestratégicas. Vão seguir fazendo como a potência mais poderosa dentre as potências, ou seja, criar regras que só ele mesmo pode quebrar para se manter com mais poder relativo aos demais.

É também importante destacar que, mais recentemente, na política externa, vem tendo uma diferença mais gritante entre democratas e republicanos. A doutrina de política externa de Trump foi mais isolacionista com esvaziamento de instâncias multilaterais como OMC, OTAN e até a ONU. Os democratas têm outra doutrina, a de ocupar e liderar esses espaços multilaterais de decisão seja para travar ou intervir, como no caso da Ucrânia. Não acredito que Kamala Harris irá mudar muito a linha do que Obama seguiu, mais até do que Biden.

Ou seja, apostar no soft power da representatividade com uma política arrojada de acordos comerciais para conter a China e trazer mais a Europa, enquanto tenta dar ocupação a Rússia pelo oriente médio. Eu ainda não consigo projetar muito como seriam as diferenças mais específicas de um então governo Harris com o de Biden ou até o de Obama. Ela deve trazer aspectos incrementais na agenda global climática e de migração. Os próximos debates e seus discursos podem trazer melhores indícios.

Como as pautas raciais e de gênero podem afetar a eleição dela? Acredita que podem ajudar mais ou atrapalhar mais (em especial, nos swing states)?

A pesquisa mais recente da Bloomberg News/Moring Consult aponta para a liderança ou empate de Kamala Harris contra Trump em alguns swing states. Trump ganha na Pensilvânia, por 4 pontos, e Carolina do Norte, por 2 pontos, enquanto, Harris está na frente com margem de 9 pontos em Michigan e dois a três pontos no Arizona, Nevada e Wisconsin. Já a Geórgia, como foi em 2020, está empatado. Um cenário bem diferente quando era Biden, sendo Wisconsin e Nevada estados historicamente com mais tendência para os republicanos.

As pautas raciais e de gênero podem contribuir mais do que atrapalhar, na minha perspectiva. Não porque são aderentes à maioria dos eleitores americanos. Quem é contra essa pauta já tem um lado e não tem muito para onde avançar. Já com Kamala Harris, por ser mulher negra e imigrante, os grupos que são aderentes a essa pauta vão se sentir mais motivados a ir votar. Ou seja, agrega quem não via sentido em votar em um homem como Biden, que dentre os democratas, era ainda visto como conservador. E Harris por sua trajetória política mais no judiciário - já que lá procurador é eleito -, do que no legislativo e executivo, só exerceu um mandato como senadora e não tem tanto desgaste entre eleitores médios. Não foi convocada a se posicionar e se submeter a lobby tanto quanto uma política de longa trajetória parlamentar, como (congressista democrata) Nancy Pelosi. Ambas são da Califórnia.

Cabe destacar também o timing da desistência de Biden e a entrada da campanha de Harris. Foram semanas depois do tiro na orelha de Trump. Isso tomou a pauta da mídia e Trump, mesmo com o tiro, já apresenta um eleitorado saturado. Mesmo com a comoção que o atentado gerou, não tinha muita margem para crescer. Bem diferente de Kamala Harris. Imagine, oito entre dez democratas afirmam que estão muitos satisfeitos ou satisfeitos com a nomeação dela, de acordo com a pesquisa da AP-NORC (Associated Press-National Center for Public Affairs Research).