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Saudades, João: conheça o baiano por trás do espetáculo visto por sete mil pessoas


 

Advogado, Ruan Passos encontrou no teatro uma nova carreira; peça caiu no gosto das crianças

  • Thais Borges

Publicado em 14/07/2024 às 05:00:00
Ruan Passos (à esquerda) e Leonardo Lacerda, que interpreta João. Crédito: Divulgação

Assim que as cortinas do teatro se fecham, ao final de mais uma apresentação do espetáculo Saudades, João, o ator, dramaturgo e advogado Ruan Passos, 34, anos, sabe que vai encontrar uma fila de crianças ansiando por uma foto com ele e o restante do elenco. Tem sido assim há dois anos, desde a estreia em Salvador.

De lá para cá, mais de sete mil pessoas já assistiram a peça, que fica em cartaz até o dia 28 deste mês, sempre aos domingos, no Teatro Módulo. No ano passado, Saudades, João foi indicado ao Prêmio Braskem de Teatro na categoria espetáculo infantojuvenil.

Mente criativa por trás da produção, Ruan se define como um contador de histórias. Desse jeito, consegue reunir todos os trabalhos - só em Saudades, João, por exemplo, atua como roteirista, ator e produtor. Além disso, também faz stand-up, escreveu quatro livros e ainda mantém um trabalho não tão artístico, como servidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

"O que eu gosto é de contar histórias, então, para cada momento, uso uma linguagem diferente", diz. Limitar um artista a uma única caixinha, explica, é algo que não lhe agrada. "Não preciso escolher uma porta só. Tem tantas portas. Quero poder entrar em uma caixinha, sair e entrar em outra caixinha. Porque ser artista é isso: estar ali em evolução", acrescenta.

No caso de Saudades, João, o sucesso entre as crianças fez com que mais de 20 escolas da cidade organizassem excursões para levar os pequenos ao teatro. O próprio Ruan ligava para as instituições sugerindo o projeto.

"Liguei para mais de 200, para tentar falar com as coordenações. Tomei mais de 190 'nãos', com certeza. Na maioria dos casos, o pessoal nem transferia a ligação. Depois, muitas escolas começaram a procurar a gente, porque o produto se conectava com as crianças. Estamos falando de crianças que, às vezes, tinham mais contato com a cultura americana do que com a nordestina, então o espetáculo tem esse diferencial".

Direito

Nascido em São Félix, por muito tempo, Ruan seguiu o sonho da família para se tornar juiz. "Eu era o melhor aluno da sala, então isso sempre gera uma grande expectativa. Era a esperança de mudança de vida para meus pais", conta ele, que se formou em Direito na Universidade Federal da Bahia.

Se tornou advogado, mas, em suas próprias palavras, nunca advogou. "Eu falo que sou advogado só para ter massagem da Caab", brinca, referindo-se à Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia, órgão auxiliar da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Bahia (OAB-BA).

Mente criativa por trás da produção, Ruan se define como um contador de histórias. Crédito: Marina Silva/ CORREIO

O teatro não entrou cedo na vida de Ruan. Primeiro porque, em São Félix, não tinha acesso a ele. A primeira peça que assistiu foi Vixe Maria! Deus e o Diabo na Bahia!, com Jackson Costa e Frank Menezes. Na época, tinha 15 anos e estava no ensino médio. A escola onde estudava organizou uma viagem dos alunos a Salvador, onde foram ao extinto Teatro Acbeu.

"Era uma peça grandiosa, com muitos artistas. Era algo raro de acontecer hoje em dia. Eu achei tudo fantástico", lembra. Dali em diante, começou a unir o teatro às referências culturais que já tinha - dos livros infantis e do hábito de ir às locadoras de filmes nos anos 2000 à saga Harry Potter, que se tornou uma de suas paixões. Do Recôncavo, a que se refere como um 'manancial cultural', ele cita o reggae e o samba de roda.

Apesar da aptidão para a arte, que aparecia até nos trabalhos escolares, Ruan saiu da faculdade para um caminho mais convencional. Fez concursos, foi aprovado e se tornou servidor de órgãos como a Procuradoria-Geral Federal e o Ministério Público do Estado. Antes, já tinha sido vendedor de ovos e feito lotação de transporte alternativo de São Félix para Salvador. Estava saindo do MP para o IBGE quando tudo mudou, em 2016.

"Em um momento, quando eu já estava com estabilidade econômica, meu pai faleceu de câncer. Ele ficou 30 dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) de um hospital público e ficou aquela história de tentar conseguir vaga, de a gente ir lá visitar", lembra. A rotina no hospital fez com que visse a vida por outra perspectiva. "Me mostrou que às vezes a gente dá valor a algumas coisas, mas que a vida passa muito rápido. Meu pai estava aqui um dia e, no outro, já não estava. Trabalhou a vida toda e, no final, não pôde pagar um plano de saúde. Aquilo tudo me fez pensar".

Foi quando ele decidiu que tentaria ser artista. Não deixaria o trabalho público, mas não continuaria tentando a carreira de juiz. Naquele momento, decidiu correr atrás do sonho que andava adormecido.

Fez curso livre de teatro do Sesc, além de outras formações em teatro, como de improviso e palhaçaria. Ganhou experiência como professor assistente de teatro para crianças em uma empresa que dava aulas em escolas particulares da cidade. Depois da peça de fim de ano das crianças, ouviu de um dos donos: por que ele, que gostava tanto de escrever, não escrevia o próprio espetáculo?

Peça

A provocação foi o pontapé para a escrita dos roteiros, em 2019. Saudades, João nasceu alguns meses depois, durante os festejos de São João daquele ano. Aos poucos, foi chamando as pessoas e chegou ao elenco de 11 atores. Fizeram o primeiro ensaio presencial em outubro e a previsão era começar uma temporada em 2020. Mas, como tudo naquele ano, foi impedido pela pandemia.

"A gente ficou fazendo ensaios online, semanalmente, por dois anos. Quando as coisas começaram a ficar mais tranquilas e a gente tomou a vacina, retomamos os ensaios com máscara em 2022", lembra.

Veio, então, o problema já conhecido de quem atua com teatro: a falta de recursos. A primeira decisão foi fazer leituras do espetáculo em que os artistas leriam o texto, de forma simples, no Teatro Gregório de Mattos. Todo o dinheiro arrecadado nas quatro leituras públicas foi destinado à montagem da produção.

"As crianças estão acostumadas à leitura desde cedo, porque os pais leem histórias para elas. Fizemos quatro leituras em julho de 2022 e é por isso que eu digo que estamos completando dois anos em cartaz", explica.

Dali em diante, começou a montagem do espetáculo maior. Ruan fez um orçamento com um cenógrafo que cobrou R$28 mil - um dinheiro que não conseguiriam pagar. Ele decidiu, então, fazer a concepção do próprio cenário. Uma das atrizes, Camila Souza, também fez as vezes de figurinista: criou o conceito que serviu de base para comprar as roupas em sites internacionais, como a Shein, por preços mais baratos.

Disney

Para Ruan, Saudades, João é uma espécie de Alice no País das Maravilhas do sertão nordestino. No espetáculo, o protagonista João, interpretado por Leonardo, é um menino triste porque perdeu o avô há pouco tempo. Os pais o obrigam a ir a uma festa de São João organizada pela avó, mas João se revolta e foge. Nessa fuga, ele descobre um reino no sertão onde um mago proibiu qualquer manifestação da cultura nordestina.

"Não pode ter música, não pode ter dança, não pode literatura de cordel. Mas, nesse mundo, João vai encontrar vários amigos que remetem à cultura nordestina e que vão ajudá-lo a lidar com o sentimento de saudade. Ao mesmo tempo, ele vai ajudar os amigos a lutar contra a tirania e a opressão", conta Ruan, que interpreta dois personagens na peça - Dominguinhos e o soldado Louco.

Falar de saudade e de luto era um dos objetivos de Ruan, sem falar a palavra 'morte' em nenhum momento. Além da cultura nordestina, uma das inspirações foi o primeiro filme Divertida Mente, da Disney/Pixar, e cuja sequência está em cartaz nos cinemas atualmente.

"É um filme que fala sobre perda, sobre tristeza, e também o (filme) Viva, a Vida É uma Festa. São filmes que falam disso, nem parecem que estão falando e as pessoas entendem a mensagem", completa.

No ano que vem, Saudades, João deve virar livro ilustrado. A proposta veio de uma editora baiana. Mas esse é só um dos projetos de Ruan. Em 2025, pretende lançar ao menos dois novos espetáculos: um infantil e outro juvenil, ao contrário de Saudades, João, que une os dois públicos.