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Quanto vale um plantão? Profissionais de saúde recebem até R$ 49 por 12 horas de trabalho


 

Em meio a um cenário de compra e venda de hospitais na Bahia, profissionais de saúde consideram valores defasados

  • Thais Borges

Publicado em 16/11/2024 às 06:58:08
Profissionais de saúde consideram que o valor pago por plantão está defasado. Crédito: Shutterstock

Durante 12 horas seguidas de um plantão, a psicóloga Juliana*, 36 anos, acompanha os pacientes de um hospital privado de Salvador. Apesar de não estar em um consultório, precisa oferecer escuta e intermediar a comunicação com o resto do time. "A equipe está subdimensionada e reflete na qualidade do serviço. A gente fica no corpo a corpo, é chão de fábrica. E vem o cansaço", conta. Mais do que a exaustão, há outro aspecto que tem se revelado desafiador: o valor que recebe por esse período, que não passa de R$ 250.

Se a rotina nos hospitais já era exigente, os últimos anos têm sido de mais aperto. Em um contexto de compra e venda de unidades de saúde nos últimos anos por grandes grupos, o pagamento dos plantões é a ponta do iceberg - aquele trecho visível para a maioria das pessoas, mas que é parte de um contexto maior.

Na semana passada, a notícia da suposta venda do Hospital da Bahia à Rede D’Or São Luiz provocou reações no setor, a ponto de ambos (o hospital por meio da atual proprietária, a Dasa) terem que se pronunciar negando a informação. A Rede D’Or já controla quatro hospitais apenas em Salvador e na região metropolitana - o Aliança, o Cárdio Pulmonar, o São Rafael e o Aeroporto.

Há, ainda, outros grandes grupos, como o Mater Dei e o Hapvida, cujo nome também foi ventilado como possível comprador do Hospital da Bahia - caso o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia federal que reprime a existência de monopólios no mercado, não autorize a transação.

No meio desses grupos e de cifras milionárias, há profissionais que recebem até R$ 49 por plantão. Um levantamento feito pelo CORREIO identificou a média dos valores e há pelo menos duas profissões que recebem menos de R$ 100 pela jornada de 12 horas. Até os médicos, que, historicamente, têm vencimentos mais altos, não têm reajuste do que recebem por um plantão há 10 anos, de acordo com Sindicato dos Médicos (Sindimed) - a média do estado é de R$ 1.050.

"Trabalho na saúde há 14 anos e sou filha de médicos, mas percebo que a gente ficou esmagado em meio a essas novas marcas", diz a psicóloga Juliana. Se fosse escolher a carreira hoje, ela até continuaria na área de saúde, mas buscaria outro segmento na psicologia. "A área de saúde não vale a pena pela remuneração e pela valorização. Todo trabalho tem sua responsabilidade, mas a gente está o tempo todo trabalhando diretamente na manutenção da vida", pondera.

Veterinários

Mas não é só o atendimento em hospitais para humanos que tem valores considerados defasados pelos trabalhadores. A situação dos veterinários, que atuam também na prevenção de zoonoses, é uma das mais dramáticas. A média do valor pago por 12 horas de plantão é de R$ 120 a R$ 150, segundo o Sindicato dos Médicos Veterinários (Sindimev), mas há clínicas que oferecem R$ 90 pelo período, com possibilidade de comissão. O CORREIO recebeu relatos de valores ainda menores - até R$ 60, em alguns casos.

Ainda segundo a entidade, em toda a Bahia, são 155 clínicas e hospitais veterinários. Dessas, 53 ficam em Salvador. Hospitais têm obrigação de funcionar 24 horas, mas algumas das clínicas também operam nesse regime, inclusive com instalação para internamento. Foi numa dessas clínicas que a médica veterinária Bianca*, 27, encontrou uma lista de afazeres no plantão que não incluía só acompanhar eventuais emergências e o internamento.

"É pior quando o proprietário acha que o veterinário é o faz tudo. A gente tem que limpar a clínica, olhar todos os animais e ficar lá sozinho. Se um animal tiver parada cardíaca, é quase impossível um veterinário apenas reverter o quadro", explica.

Ela acredita que essa situação se repete na maioria dos estabelecimentos. Pela própria dinâmica do mercado, até pessoas com especialização pegam plantões, como é seu caso. A diferença é que quem está formado há mais tempo costuma rejeitar esses locais, a menos que esteja precisando muito do dinheiro.

"Eu amo ser veterinária, mas você precisa de dinheiro para viver. Na época da graduação, eu fiquei na dúvida entre Medicina e Medicina Veterinária. Hoje, faria Medicina, mas estou tentando ver alguma forma de a Veterinária me trazer benefícios".

Formada há quatro anos, a médica veterinária Heloísa*, 27, conseguiu parar de dar plantões para trabalhar apenas na sua especialidade. "Tem muita gente se formando e acaba sendo um pouco cômodo para quem é dono de clínica. Eu não aceito mais um plantão por R$ 100, mas quem está saindo da faculdade às vezes vai aceitar", diz. Na graduação, ela esperava encontrar um cenário totalmente diferente. "Sempre pensei que a medicina veterinária seria um mercado promissor, porque hoje em dia, os lares têm mais animais do que filhos. Mas não é assim".

Diretor executivo do Sindimev, Willadesmon Silva explica que a maioria dos turnos noturnos recebem acidentes que ocorrem em casa. "Da mesma forma que acontece com os humanos, os animais sofrem parada cardíaca, sofrem convulsão. Daí você vê a importância desse profissional", explica.

Por lei, o piso de um veterinário contratado de acordo com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) deveria ser de R$ 7,2 mil para 30 horas semanais com jornadas de seis horas. Com a jornada de oito horas, o piso iria para R$ 10,3 mil. "Se a gente fizer uma extrapolação, qual seria o valor de um plantão? Pela mesma lei, a hora mínima não pode ser menor do que R$ 45. Se colocarmos R$ 50 por 12 horas, daria em torno de R$ 600, que seria um valor mais justo. Não que seja ideal, mas é mais justo".

Experiência

Um plantão de medicina em uma Unidade de Pronto Atendimento sai por R$ 1.050, em média, segundo a presidente do Sindimed, Rita Virgínia. Esse valor é repassado pelas empresas que administram postos e, quando há uma nova, ele é mantido. Por isso, o valor tem sido o mesmo nos últimos dez anos. "Nos particulares, também não está muito melhor. Somado a isso, com a uniformidade de hospitais de um mesmo grupo, se um médico sai de um, fica mais restrito o mercado porque você não consegue entrar em outro", afirma.

Ela defende que o estado e os municípios baianos façam concurso para a contratação. A realidade da maioria dos médicos é de ser contratado como pessoa jurídica e, portanto, sem direito a férias, licença maternidade ou dias de atestado.

Não é incomum que os hospitais troquem médicos experientes por mais jovens, para reduzir custos. "Nos últimos anos, a maioria dos recém-formados está dando plantão em UPAs, em PSF (postos de Saúde da Família). Eles já saem com convite, até porque o valor para a residência médica é pequeno e tem poucas vagas", acrescenta.

A médica Paula*, 29, trabalha em duas unidades de saúde da rede pública. Por mês, ela dá 12 plantões noturnos em emergência - em um local, recebe R$ 1.140 e, em outro, por ser no fim de semana, R$ 1,3 mil. Tem de tudo - casos graves, leves, adulto, criança. Numa única noite, recebeu três baleados de uma vez, estando sozinha.

Do valor da remuneração, 20% é para o imposto por receber como pessoa jurídica. Ainda assim, ela acreditava, na época da graduação, que trabalharia mais em postos de saúde durante o dia - e menos no esquema de plantão. Logo percebeu que, para ter uma renda que quisesse, não podia desistir dos plantões.

"Medicina ainda é vantajoso, mas acho que tem outras coisas a serem exploradas. Se você pensar na área de saúde só pelo dinheiro, não vale a pena. A gente ganha um valor considerável, mas tem que trabalhar muito. Me sinto exausta e não tenho direito a férias, a atestado, a nada".

O plantão de especialista pode ser um pouco maior, mas também é considerado desatualizado. Sem os descontos, um plantão de pediatria, por exemplo, pode receber R$ 1,5 mil, ainda que alguns hospitais cheguem a pagar R$ 2 mil.

"Grosso modo, sim, os plantões estão defasados, mas eu faço essa ponderação de que o ponto de partida dos médicos era um salário muito acima da média das outras profissões", diz o médico pediatra Conrado*, que trabalha em um hospital em Salvador e dá plantões de pediatria em hospitais de Feira de Santana.

De acordo com ele, em Feira, nem todos os profissionais que dão plantão na área são mesmo especialistas. "Estou falando da segunda maior cidade da Bahia, em que muitas pessoas que dão plantão de pediatria não são pediatras. A gente tem uma realidade no país na qual o número de especialistas ainda é pouco com relação à necessidade. Mais preocupante que isso é o contexto, por exemplo, das UTIs (Unidade de Terapia Intensiva) pediátricas. Muitos dos médicos não são especialistas nem em pediatria, nem em UTI pediátrica. Isso é um pouco alarmante".

Quanto vale um plantão? Profissionais de saúde recebem até R$ 49 por 12 horas de trabalho. Crédito: Quintino Andrade

Hospitais

Nos principais hospitais privados de Salvador, o plantão de 12 horas para fisioterapeutas vai de R$ 225, na Fundação Bahiana de Cardiologia, até R$ 380, no Hospital Cidade. Recentemente, essa remuneração chegou a ser ainda menor, segundo o presidente do Sindicato dos Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais do Estado (Sindifito), Glaucio Roberto.

De acordo com ele, em maio desse ano, a entidade recebeu uma denúncia referente à empresa Fabamed, que faz a gestão do Hospital 2 de Julho, antigo Hospital Espanhol. "Estavam pagando R$ 14,14 por hora, no plantão de 12 horas. E a gente sabe que nunca eram 12 horas, chegava a 48 horas. Teve um momento em que um profissional me ligou falando que estava há 48 horas, corria o risco de dobrar e chegar a 72 horas", conta.

Na mesma época, o Hospital Metropolitano, gerido pela Santa Casa de Ruy Barbosa, estava demitindo profissionais de fisioterapia para fazer contratação via pessoa jurídica. As empresas recuaram, nos dois casos, depois que o sindicato fez uma denúncia à Secretaria da Saúde do Estado (Sesab).

O Hospital da Bahia, que paga hoje R$ 375 por 12 horas de plantão, chegou a demitir quase 100 profissionais desde dezembro do ano passado. "Ganhamos uma ação coletiva por isso. Foram quase 100 trabalhadores demitidos e os que estão no hospital hoje são ‘pejotizados’. Trabalham em UTI, em emergência, urgência, estão expostos a riscos biológicos", pontua.

Assistentes sociais, por sua vez, ainda são uma das profissões cuja contratação não separa os plantões da jornada semanal. Para a presidente do sindicato que representa a categoria, Marleide Santos, não receber por um plantão é um problema.

Esses plantões estão incluídos nas 30 horas semanais que compõem a jornada das profissionais. Ela explica que a contratação de empresas para gerir hospitais públicos também contribui. "Infelizmente, as coisas estão péssimas há muito tempo. Um assistente social hoje não recebe nem dois salários mínimos", diz, referindo-se à média salarial, que é de R$2,3 mil a R$ 2,5 mil. O salário mínimo atual é de R$ 1.412.

Já para os técnicos de enfermagem, o diretor do Sindisaúde Rede Privada Adauto Silva considera que o piso acabou sendo prejudicial. O salário-base dos técnicos deveria ser de R$ 3.325, mas, na rede privada, o Supremo Tribunal Federal tinha decidido que a implementação deve acontecer mediante negociação coletiva e de forma regionalizada. Uma das mudanças foi aumentar a carga horária de 36h para 44h.

"A média, na Bahia, ficou de R$ 1,8 mil. Mas tem lugares que pagam R$ 1,35 mil. A diária de 12 horas em alguns lugares fica até de R$ 49. As empresas de homecare pagam R$ 80, R$ 90. O valor se torna baixíssimo".

Os enfermeiros têm uma média salarial de R$ 4,9 mil, de acordo com a presidente do Sindicato dos Enfermeiros, Alessandra Gadelha. Eles têm contratação como celetistas ou estatuários.

"Com enfermeiros, técnicos e nutricionistas, você ainda encontra mais essa formalidade. Essa contratação de plantões é mais comum para profissões como médicos e fisioterapeutas".

'Tem que ter diálogo social sobre a redução de jornada', diz professora de Direito

Em todo o Brasil, na última semana, o debate sobre o fim da jornada 6x1 - aquela em que se trabalha por seis dias seguida de uma folga - dominou tanto as redes sociais quanto o noticiário. Para a advogada Christianne Gurgel, professora da Faculdade Baiana de Direito e vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), é um tema que precisa estar na pauta.

"Temos que, pelo menos, iniciar essa conversa", diz. A advogada ressalta que o Brasil tem uma das maiores jornadas de trabalho do mundo. Enquanto os brasileiros que estão nesse regime trabalham 44 horas por semana, a média mundial é de 37 horas.

Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a ideia é alterar a jornada de trabalho para 36 horas, em uma escala de quatro dias de trabalho seguidos por três dias de folga. O texto foi apresentado pela deputada Erika Hilton e desenvolvido pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), criado pelo vereador eleito Rick Azevedo, ambos do PSOL.

"É necessário que haja um diálogo social que envolva a classe trabalhadora através de suas entidades representativas, assim como a classe empregadora e o Estado. Acredito que seja mais viável uma redução para 40 horas, mas é necessário, sim, discutir. A gente tem visto doenças como depressão e ansiedade crescendo muito como causas de afastamento de trabalhador. Se você não tem seu descanso, você acaba não tendo a possibilidade de exercer todos os seus direitos".

Já a remuneração por plantão, no caso de profissionais que recebem como pessoa jurídica (PJ), ficou mais comum na área da saúde após a aprovação da reforma trabalhista de 2017. Foi neste momento que uma novidade na legislação permitiu que essas contratações de plantão pudessem ser feitas por meio de acordo individual e não necessariamente por convenções coletivas.

"A reforma trabalhista recepcionou a escala 12x36, em que você trabalha 12 horas seguidas para gozar de um repouso de 36 horas. A outra mudança foi com relação ao descanso. Em regra, todo trabalhador tem direito ao descanso intrajornada, que é o almoço, por exemplo. Ele é obrigatório. Mas, com a reforma, essa hora pode ser paga para quem trabalha 12x36", explica.

Se a pessoa trabalha em regime de plantão com um contrato de natureza empregatícia, ela deve ter os mesmos direitos de outros profissionais contratados como empregados. É diferente dos trabalhadores autônomos, que não têm esses direitos. No caso dos primeiros, por exemplo, se o plantão incluir o período entre as 22h e as 5h da manhã, a pessoa deve receber o valor correspondente ao adicional noturno.

Quanto vale um plantão de 12h?

  • R$ 60 a R$ 150

São alguns dos valores oferecidos a médicos veterinários.

  • R$ 49 a R$ 120

Esses valores são oferecidos a técnicos de enfermagem.

  • R$ 230 a R$ 250

Para assistentes sociais, que não recebem o valor avulso.

  • R$ 225 a R$ 380

É a faixa para fisioterapeutas.

  • R$ 260 a R$ 280

É a média para psicólogos.

  • R$ 1050

É o valor médio para médicos.

*Nomes fictícios