Pública ou particular? Obras Sociais Irmã Dulce vão abrir faculdade de Medicina em Salvador
Prédio no bairro de Patamares, que foi doado, sediará instituição de ensino voltada para o legado de Dulce, anuncia superintendente das Osid ao CORREIO
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Jorge Gauthier
jorge.gauthier@redebahia.com.br
A primeira missão religiosa de Irmã Dulce (1914-1992), que ficou conhecida por ajudar a cuidar dos doentes, não tinha nenhuma relação com a saúde. Em 1933, alguns meses após se formar professora primária e tornar-se noviça, a religiosa deu aulas em um colégio mantido pela sua congregação, na Cidade Baixa, em Salvador. De lá pra cá, a educação sempre teve a atenção do Anjo Bom da Bahia. Agora, cinco após ter sido nomeada Santa pela Igreja Católica, caberá aos seus descendentes transformarem seu sonho de promover saúde através da educação em uma realidade que talvez nem ela imaginasse que fosse possível.
Maria Rita Lopes Pontes
"Nós vamos abrir, dentro de dois anos, a Faculdade Santa Dulce. O primeiro curso será de Medicina"
Sobrinha da santa, Maria Rita destacou, durante conversa com o podcast especial sobre os cinco anos da canonização da religiosa, que o projeto segue os passos da tia no sentido de manter o seu legado. “Procuro fazer o que que ela faria se estivesse aqui. Ela foi pioneira no ensino superior de Medicina na Bahia. Na década de 1970, ela já acolhia jovens estudantes para fazer aulas práticas de Medicina aqui [no Hospital Santo Antônio, fundado em 1983]. Então, acredito que estamos seguindo os passos dela”, argumentou Maria Rita.
A Faculdade Santa Dulce será instalada no bairro de Patamares, em Salvador, e deve começar as suas aulas do curso de Medicina até 2026. “A gente ganhou, na época da pandemia, um espaço no prédio onde funcionava como uma instituição de ensino superior. O empresário [que prefere ter seu nome mantido no anonimato] desistiu de manter a sua instituição durante a pandemia e fez a doação do edifício para as Osid. Ele conheceu Irmã Dulce na década de 1970 e na época a ajudou. Ele passou muitos anos dizendo para a família que queria ajudar mais e, na pandemia, nos doou esse prédio”, reforça Maria Rita.
Desde junho de 2021, o prédio onde será a futura Faculdade Santa Dulce abriga o Centro Especializado em Reabilitação com 14 consultórios e realizando, gratuitamente, 7 mil procedimentos por mês. “Estamos fazendo todas as adaptações no prédio para que lá a faculdade funcione de forma funcional, pois todo atendimento do centro irá continuar. É um espaço completo para quem vai estudar, pois os estudantes vão poder também olhar para o atendimento de perto. Os futuros médicos estarão vendo de perto as pessoas que precisam de atendimento”, reforça a superintendente das Osid destacando que a faculdade tem como meta manter o legado de Dulce.
‘Os filhos da véia’
Assim eram conhecidos os médicos que atuavam no Hospital Santo Antônio na época que Irmã Dulce era viva. Dulce sempre teve auxílios para seguir sua missão de amar e servir. E não só freiras, padres e médicos: a ajuda vinha de qualquer lugar. De 1949, quando invadiu o galinheiro do convento para abrigar cerca de 50 doentes, até 1961 - quando o Albergue Santo Antônio funcionava com 150 leitos - Irmã Dulce não tinha médico ‘de carteira assinada’ atuando no cuidado das pessoas. O médico americano Frank Raila foi, em 1961, o primeiro a atuar em dedicação exclusiva com a freira. Desde então, foram muitos os ‘filhos da véia’ formados nas unidades de saúde ligadas às Osid.
Ao todo, cerca de 7,5 mil profissionais atuam hoje nas Osid, reunindo todas as unidades da instituição (capital e interior) - apenas na capital, são quase 400 médicos. “O nosso objetivo com a Faculdade Santa Dulce é ampliar esse legado e preservá-lo. A nossa missão é nunca fugir do foco do bom atendimento voltado para os que mais necessitam. Hoje, somos 100% SUS (Sistema Único de Saúde) e gratuitos e vamos nos manter assim. Ela [Irmã Dulce] nunca quis abrir para outro tipo de atendimento com planos de saúde por receio de ter segmentação e uma mudança da forma de atender. Temos uma visão de atendimento e de formação de profissionais que queremos manter e ampliar através dos profissionais formados na faculdade Santa Dulce. É algo que está na cultura da instituição”, explica Maria Rita.
Parte do corpo docente da Faculdade Santa Dulce será formada por profissionais que já atuam nas Obras Sociais. A faculdade terá cobrança de mensalidade particular, segundo Maria Rita, ‘com valor compatível ao mercado’.
“Serão novas gerações dos ‘filhos da véia’ que acolhem o paciente de uma maneira especial, com cuidado e com amor como ela sempre dizia. A pessoa que pede ajuda na rua não quer só escola. Ela tem que ser escutada e com os pacientes devemos ter o mesmo pensamento. São muitos anos que estamos pensando em ter uma instituição de ensino superior. Vamos formar jovens médicos desde o início levando os nossos valores e cuidados. Hoje, tem lugares onde o médico mal te examina e já passa o remédio para se livrar do paciente”, reflete Maria Rita destacando também que atualmente as Osid recebem estudantes de diversas unidades de ensino da Bahia para fazer seus treinamentos em saúde.
Com a faculdade, as Osid fecham um ciclo completo educacional que foi iniciado por Santa Dulce em maio de 1939 quando ela inaugurou o Colégio Santo Antônio, voltado para os operários e seus filhos. Irmã Dulce também criou, em 1964, o Centro Educacional Santo Antônio (CESA), instalado em Simões Filho, com crianças de 3 a 17 anos. O CESA atende mais de 900 crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Com um modelo de ensino que engloba do primeiro ao nono ano (Ensino Fundamental I e II), o Centro oferece ainda acesso à arte-educação, iniciação profissional, atividades esportivas, assistência odontológica, alimentação, fardamento e material escolar gratuitos.
A Bahia possui 29 cursos de Medicina - 11 em faculdades públicas e 18 privados. Ao todo, são ofertadas 3.118 vagas. Entre as unidades da Federação, São Paulo concentra 22% das vagas (9.213) do país. Minas Gerais vem em seguida, com 12% das vagas, antes do Rio de Janeiro, com 7,7% e Bahia, com 7,5%. Os dados são da Demografia Médica, estudo do Conselho Federal de Medicina (CFM).
OUÇA! Maria Rita Lopes Pontes, superintendente das Obras Sociais Irmã Dulce, participou de podcast especial apresentado pelo jornalista Jorge Gauthier com direção de áudio de Arthur Max. Ouça completo nas principais plataformas de áudio. Ouça aqui:
‘Legado contínuo
A faculdade é apenas um dos aspectos de fatos que mudaram a realidade das Osid após a canonização da freira, em outubro de 2019. Desde então, a instituição vive uma ebulição em vários segmentos: aumento de devotos na parte religiosa; de atendimentos na saúde; e de serviços oferecidos. Só uma coisa não muda: o aperto financeiro.
“É sempre uma luta sem fim. A obra precisa estar sempre se atualizando especialmente por ser um hospital de ensino onde acolhemos diversas residências médicas. A gente tem que correr atrás do recurso para construir e equipar. Temos apoio das prefeitura e do estado. Mas também temos que fazer a nossa parte para complementar esse recurso. É muito difícil ser um hospital desse tamanho 100% SUS. Então, a gente precisa de doações da sociedade para nos ajudar a nos manter”, destaca a superintendente das Osid.
Antes da canonização, as Osid tinham 4,9 mil sócios-protetores que faziam doações mensais. Atualmente, são 22,5 mil. “Nossa meta é atingir 50 mil sócios. Se cada um doar um pouco podemos ajudar ainda mais pessoas”, clama a gestora destacando que 6,6 milhões de procedimentos ambulatoriais são realizados pelas obras por ano (aumento de 88% depois da canonização) além de 46 mil cirurgias (alta de 131% após Dulce virar santa) e 63 mil internamentos (crescimento de 75% nos últimos cinco anos).
Devoção e Dulcismo
A devoção religiosa por Santa Dulce cresceu vertiginosamente após ela ter sido incluída no rol dos 8 mil santos da Igreja Católica. É impossível, segundo destaca Maria Rita, estimar o número de fiéis da santa. Contudo, os números de igrejas, paróquias e capelas dedicadas a Dulce no Brasil inteiro já mostram essa ampliação da fé. Já são 83 locais dedicados ao anjo bom pelo país. Além disso, há 4 locais no exterior (3 na França e 1 na Itália) que abrigam hoje relíquias de Dulce. Relíquias podem ser fragmentos de ossos; objetos que, em vida, pertenceram à santa ou tiveram contato direto com seu corpo.
“A gente recebe constantemente pedidos do Vietnã, Inglaterra e Espanha. São muitos turistas que nos visitam e a devoção cresce. Eles se interessam pela história e se encantam por Dulce”, explica Maria Rita destacando que antes da canonização o santuário dedicado à freira recebia, em média, 56 mil visitantes por ano. Atualmente, são cerca de 600 mil visitantes anuais. Inclusive, em novembro, será reinaugurado o Memorial Irmã Dulce, que reúne o acervo material da santa.
Dulce ultrapassa as religiões e, pensando nisso, as Osid estão empenhadas em disseminar o ‘Dulcismo’, que tem como objetivo promover uma imersão em sua cultura organizacional. “São valores intrínsecos à identidade da instituição, orientando que sejam compreendidos, internalizados e aplicados nas ações cotidianas”, finaliza Maria Rita.
Veja também o documentário Pelos Olhos de Dulce, produzido pelo Correio, em 2019